8.5.07

Boas-vindas, Tsugumi


A passagem da adolescência à vida adulta tem ritos dolorosos. E tanto mais dolorosos quanto menos explícitos.


De fato, em sociedades primitivas, os ritos de passagem são delimitados no tempo. Quando o jovem chega a certa idade, passa por determinadas provas, muitas delas envolvendo a comprovação da coragem e da resistência à dor. Ao vencer essas etapas, torna-se adulto, passa a ser respeitado como tal e assume as responsabilidades inerentes à nova fase de sua vida.

Nas sociedades que se autoproclamam desenvolvidas, ao contrário, os jovens vêem estender-se por um tempo infindável a sua entrada no mundo adulto. E as provas, ao invés de serem colocadas às claras, são ambíguas, perdidas em um emaranhado de regras obscuras, nas quais a dissimulação prevalece, envolvendo a juventude em uma angustiosa espera.

Parcela desse mundo nem um pouco transparente pode ser encontrada no romance Adeus, Tsugumi, da escritora japonesa Banana Yoshimoto, publicado pela Editora Cavalo de Ferro (http://www.cavalodeferro.com/), de Portugal.

Partindo da jovem Tsugumi, cujo "crescimento para a idade adulta" era "comparável ao processo hesitante de andar", Yoshimoto retrata os encontros e desencontros, as perdas e as descobertas inerentes àquele que, com certeza, é o período mais difícil de nossas vidas. Trata-se de um romance de formação, no qual Maria (a narradora), Yoko e Kyõichi, todos vivendo ao redor de Tsugumi, descobrem as verdades da vida adulta e se despedem da adolescência, lutando para não abandonar as próprias certezas.

Tsugumi é, segundo ela mesma, "uma fulana incompreensível. Que nunca se habitua ao meio à sua volta em lado nenhum, e que, não entendendo sequer a si própria, não se consegue refrear e não percebe onde poderá chegar, mas que, mesmo assim, está seguramente certa". Portadora de um agudo senso de realidade, que se aproxima da frieza, e de uma agressividade ímpar, Tsugumi é moldada pelo conviver diário com a iminência da morte. Ela carrega a beleza e a pureza de alguém que pretende ser má, mas cuja maldade é apenas um tipo original de auto-afirmação.

Apesar de escrever no Japão ocidentalizado, Yoshimoto nos oferece as contradições não só da adolescência, mas do próprio povo japonês. Todos os pares aparentemente discrepantes – e que nós, ocidentais, consideramos incoerentes – da cultura japonesa, aqueles sabiamente apontados por Ruth Benedict em seu clássico O crisântemo e a espada, estão presentes em Tsugumi: a cortesia e a insolência, a rigidez de conduta e a adaptabilidade, a submissão e a insubordinação, a lealdade e a traição, a bravura e a timidez, a disciplina e a insubordinação, a arte e a guerra. Características presentes, com certeza, em inúmeros povos, mas que no Japão adquirem uma cor nova, talvez moldada pelo zen.

A forma de narrar de Yoshimoto é sugestiva, intercalando os tempos e os espaços, fugindo agradavelmente da narrativa linear, e buscando nos introduzir, de maneira harmônica e sem qualquer pressa, a intervalos meticulosamente estudados, na trama que almeja revelar.

Romance da passagem de uma idade a outra, da migração rumo ao novo e ao desconhecido, a obra delineia dúvidas e dificuldades pessoais em um cenário também cambiante – do litoral ao centro urbano, da natureza à paisagem artificial –, em que o lirismo permeia as descobertas, os diálogos e a forma de olhar: "Na escuridão, as flores emergiam flutuando de brancura. Sempre que balançavam ao vento, em uníssono, projectavam uma imagem branca que ia permanecendo, como dentro de um sonho. Ao lado, o rio fluía num sussurro, e muito longe, em frente, o mar da noite fazia o luar luzir como uma estrada, e, enquanto resplandecia, tremeluzindo, parecia serpentear de negro até o infinito".

O mesmo estilo límpido pode ser encontrado nas descrições da simplicidade da vida familiar e dos dramas individuais que se refletem nas escolhas e nos comportamentos de cada personagem. Yoshimoto nos mostra como, apesar dessas delicadas e insistentes dores, um indistinto sentimento de felicidade pode permear o cotidiano. E é exatamente isso o que guardamos dos diálogos, nos quais as vozes se manifestam a caminho do momento de encontro, que todo verdadeiro diálogo permite. E mesmo que consigamos prever o final, quando este surge ainda guarda um clima de surpresa.

A despedida do mundo adolescente, de seus sonhos e de suas certezas, ocorre na forma da antevisão de uma dolorosa nostalgia – ou da certeza de que o esquecimento daqueles dias fatalmente virá. Ou seja, a convicção de que lembraremos de todas as alegrias e de todas as tristezas da adolescência, mas sem os cheiros, sem as cores, sem a força necessária para reavivar aqueles sentimentos dentro de nós. É impossível, portanto, os personagens não se anteciparem à saudade, restando aos leitores segui-los em sua jornada, revivendo o nosso passado, ou, se formos adolescentes, experimentando uma profunda identificação.

Para Yoshimoto, "crescemos a olhar para uma multiplicidade de coisas. E a cada instante que passa vamos mudando. Enquanto nos vamos dando conta repetidamente deste facto sob uma miríade de formas, vamos avançando". Assim, Tsugumi e os demais personagens crescem descobrindo inclusive o amor; e, no que se refere a Tsugumi, ao fazer essa descoberta ela "brilhava com um ar de tal felicidade que parecia até ter pressa de viver".

Por meio do amor, Tsugumi descortina algo além dela mesma, o tesouro que todo adolescente deveria ter a chance de conhecer e conservar. Ao final, a "sensação de solenidade" que Kyõichi descortina no olhar de Tsugumi também nos preenche, enquanto o estilo de Banana Yoshimoto nos invade "tal como a água que se infiltra no areal", para utilizarmos uma imagem cara à autora. E então, impregnados do lirismo cruciante dessa escritora, compreendemos por qual motivo descobrimos em seu texto as melhores características do romance moderno japonês, de Tanizaki a Kawabata, passando por Mishima.



Rodrigo Gurgel
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Rodrigo Gurgel (http://rodrigogurgel.blogspot.com/) é escritor e editor. Foi um dos vencedores do Concurso de Contos "450 Anos de São Paulo", promovido, em 2004, pelo Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo. Escreve resenhas e artigos para o jornal Rascunho (http://rascunho.ondarpc.com.br/) e publica uma crônica semanal no diário Bom Dia Jundiaí (http://tvtem.globo.com/bomdiajundiai/).

4 comments:

Elton Pinheiro said...

Rodrigo, gostei do post, e do blog também.. vou anotar o endereço aqui. Fiquei com vontade de ler o livro, coisa elegante..

[ ]s

Anonymous said...

O livro é fabuloso e este artigo está excelente!
Beijos,
Ana

Sara F. Costa said...

É curioso que em português a tradução ficou "Adeus, Tsugumi" assim como em inglês "Goodbye Tsugumi"(que é só o oposto) e noutras línguas como espanhol ficou apenas 'Tsugumi' lol Ainda nao pesquisei qual o nome original do livro...

Anonymous said...

Sim, provavelmente por isso e