21.7.07

Silêncio de Shusaku Endo 遠藤 周作

Agora que Martin Scorsese se prepara para adaptar ao cinema uma das obras mais conhecidas do escritor nipónico Shusaku Endo (1923-1996), torna-se relevante abordar aquele que é um dos seus romances mais importantes e mais lidos – “Silêncio” (Chinmoku), sobretudo quando a sua narrativa aborda um momento único (e muito pouco divulgado por estes lados...) na história das relações entre Portugal e o Japão.



Em 1643, o mundo cristão recebe com choque a notícia de que o padre português Cristóvão Ferreira, o missionário líder da Companhia de Jesus no Japão, considerado como uma espécie de paladino da fé cristã no oriente, apostatou. Em Lisboa, três jovens padres, Sebastião Rodrigues, Francisco Garrpe e Juan de Santa Maria, antigos discípulos de Ferreira, ficam atónitos com a perturbadora novidade e decidem partir para a terra do sol nascente em busca do seu mestre, procurando descobrir se realmente apostatou perante a tortura e, caso o tenha feito, quais as razões que o motivaram a abandonar a fé. Num contexto histórico em que os missionários portugueses, que haviam propagado a fé cristã no Japão no século anterior, estavam a ser perseguidos pelo shogunato de Tokugawa, a entrada clandestina em terras nipónicas pressupõe um ponto de não-retorno que os três padres decidem assumir incondicionalmente... mesmo que lhes custe as próprias vidas.

A narrativa centra-se na personagem de Sebastião Rodrigues. Chegado ao Japão, Rodrigues irá descobrir uma terra onde a religião cristã sobrevive com dificuldade nalgumas aldeias de camponeses, com os seus seguidores a serem perseguidos por um governo que cultiva a ideia de que “esta terra não é propícia aos ideais cristãos” e tortura todos aqueles que, secretamente, seguem ou professam o catolicismo até que estes reneguem a sua fé. Na sua missão de descobrir Ferreira e tentar manter viva o pouco que resta da fé cristã em terras japonesas, Rodrigues deparar-se-á com um conjunto de situações que lhe farão questionar a inacção do seu Deus perante tamanhas atrocidades ou, por outras palavras, o seu imenso e aterrador silêncio a que o título do livro alude. Sentindo-se abandonado a si mesmo numa terra estranha que lhe resiste, e desejando o martírio como fim glorioso para a sua existência terrena, Rodrigues encontrar-se-á perante o terrível dilema de ter de abdicar das suas crenças para salvar a vida daqueles que veio evangelizar ou manter-se fiel à Igreja sem, no entanto, cumprir os seus ideais de salvação de todos os homens.

De que nos fala, no fundo, “Silêncio”? Essencialmente, é uma história sobre a fé ou, melhor, sobre a dúvida como parte fundamental de qualquer crença religiosa sólida. A viagem de Rodrigues, mais do que uma simples demanda pelo seu mentor num território desconhecido, é, sobretudo, uma jornada de questionamento interior da sua própria fé no dogma cristão – horrorizado com o sofrimento dos camponeses japoneses, bem como com o cerco que se aperta em seu redor, Rodrigues depara-se com um conjunto de frustrações amargas que lhe farão rever e pôr em causa toda a sua adoração pela figura de martírio de Cristo – ao mesmo tempo que tenta, desesperadamente, não abdicar dos valores e da fé que o guiaram durante toda a sua vida. Não é difícil encontrar, nas dúvidas do protagonista, paralelismos com a vida do autor, nem tão pouco perceber o que o terá motivado a escrever este romance - o próprio Endo teve uma vida preenchida de conflitos com a sua fé cristã, e foi só através de um estudo aprofundado da vida de Cristo e da descoberta de que o lendário mártir também tivera dúvidas que o autor conseguiu conciliar-se com a sua fé e com o mundo.

Como refere Scorsese no excelente prefácio que assina para a recente edição da Peter Owen, outro dos factores determinantes na história é o realçar da importância da figura de Judas na saga bíblica – o seu papel é inúmeras vezes referido por Rodrigues, que, no seu período de formação, nunca compreendera totalmente a sua importância na mitologia cristã e que irá, ao longa da história, começar a perceber o significado da frase que Cristo lhe dirigiu: “O que tens a fazer, fá-lo depressa.” A figura de Judas, aliás, ganha uma curiosa personificação nessa personagem extraordinária que é Kichijiro, um pobre e fraco pedinte que assume, desde o início, a sua fraqueza, a sua corrupção, a sua incapacidade de se manter fiel perante as circunstâncias mais duras... portanto, a sua própria humanidade.

O que realmente surpreende na escrita de Endo é a extraordinária compreensão que demonstra ter pelas fraquezas e dúvidas das suas personagens – não estamos perante uma ficção com heróis duros e perfeitos, a dúvida e a insegurança são uma constante nos pensamentos de Rodrigues e o autor, com inegável mestria, consegue descrever estes sentimentos sem entrarmos numa escrita exclusivamente centrada na primeira pessoa e, acima de tudo, sem nos fazer perder o interesse pelo desenrolar da história. Não estamos tão pouco perante um panfleto anti-cristão ou meramente denunciante da perseguição japonesa aos missionários portugueses. O objectivo de Endo parece ser o de mostrar que a verdadeira fé (seja ela cristã, budista ou muçulmana) não consiste numa obediência cega e militante dos dogmas religiosos mas, antes, numa constante (re)interpretação das grandes narrativas canónicas e no respeito pelo valor da vida humana.

Mais do que uma mera história sobre religião, e mais do que um simples romance histórico, “Silêncio” de Shusaku Endo é um romance notável que urge descobrir, seja nas suas versões em inglês ou francês, enquanto uma nova edição portuguesa (que, provavelmente, só será publicada aquando da estreia do filme de Scorsese...) não chega.

Ricardo Gonçalves

8 comments:

eli miguel said...

... e sinto-me um pedacito menos ignorante.

Grata, Ricardo Gonçalves.

Bj-e

Anonymous said...

mal posso esperar pelo filme!

Anonymous said...

Deu já vontade de ler, é pena ainda nao estar nas lojas. :(

E vem com um bom bónus: um filme. hehe

Sara F. Costa said...

Depois do filme, há-de aparecer de certeza...

Lauro António said...

Sara, tens um "desafio" no meu blog. Bjs

Anonymous said...

Muitos parabéns pelo blog, que descobrimos quando procurávamos o livro “Silêncio”, de Shusaku Endo. Há cerca de um ano, vimos no suplemento do Expresso uma pequena nota dando conta de que Martin Scorsese se preparava para rodar um filme sobre este livro, tendo desde logo despertado a nossa curiosidade. Curiosidade que se deve ao facto de João Rodrigues, uma das personagens do livro “Silêncio”, ser natural de Sernancelhe, e o seu percurso de vida no Oriente se enquadrar perfeitamente na história descrita por Shusaku Endo. Dizer, ainda a título de curiosidade, que o filme Shogun, transmitido pela RTP em 1983, fazia também alusão a um padre jesuíta no Japão, cuja vivência era em tudo semelhante à de João Rodrigues.
Conhecido no Japão como “Tçuzzu”, que significa intérprete, Rodrigues terá nascido em Sernancelhe em 1561. Ainda que nada se saiba da sua família e sobre a sua juventude, sabe-se contudo que era um padre jesuíta que partiu para o Japão, esteve em Macau e na China, tendo desempenhado um importante papel na cristianização daqueles povos. Considerado um antropólogo, um sociólogo, um linguista, um gramático, um dicionarista e um historiador, Rodrigues é o autor da primeira gramática de língua japonesa, apresentada em Nagasaki, em 1604, com o nome “Arte da Lingoa do Japan”.
O escritor Michael Cooper, no livro “Rodrigues, o Intérprete”, de 1994, editado pela Quetzal, com o apoio da Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses e da Fundação Calouste Gulbenkian, fala deste sernancelhense cujo percurso de vida é ainda motivo de estudo e admiração no Japão, principalmente entre a comunidade académica.
Aguardamos, portanto, a chegada do filme de Martin Scorsese. Estamos também a tentar encontrar um exemplar do livro “Silêncio”, tarefa que não se tem revelado fácil!
Cumprimentos,
Câmara Municipal de Sernancelhe

Djinn said...

Pois eu li e adorei o «Samurai» do mesmo autor, é muito bom.

Jutilde de Medeiros said...

Também li o Samurai, é demais, mas o primeiro livro que li dele foi ADMIRÁVEL IDIOTA, simplesmente maravilhoso, bem que podiam filmar esse também