27.9.09

Desse Maio de '69...


13.05.1969






I. Puzzle de paradoxos


"...É bem possível que aquilo que eu designo por 'felicidade' coincida com o que outros interpretarão como um 'momento de perigo iminente'. Pois que esse Mundo no qual eu me imiscuí, sem que o fizesse por recurso ao meio próprio das palavras, preenchendo o meu íntimo com uma 'ideia de felicidade', mais não era que um Mundo Trágico. A tragédia, claro está, era esse 'momento' ainda e sempre por consumar; e, ainda assim, as raízes da tragédia residiam nele; a queda em desgraça era-lhe implícita; e inteiramente despojada de qualquer 'futuro'. Obviamente, a essência dessa minha 'felicidade' era o gozo-em-si de ter previamente adquirido a totalidade das qualificações necessárias para viver nesse Mundo. A base do meu orgulho pessoal era esse sentimento de ter adquirido esse precioso salvo-conduto, não por intermédio das palavras, mas somente pela cultura do corpo e só por ela. Esse Mundo, que era o único lugar no Universo onde me era permitido respirar livremente, e sendo, ainda assim, um espaço tão remotamente distante da trivialidade dos lugares-comuns e tão desprovido de futuro - esse Mundo que eu perseguira incansavelmente, e que desde o desfecho da Guerra, me deixara uma sensação aflitiva de constante frustração. Mas as palavras não haviam desempenhado qualquer papel de relêvo em trazê-lo até mim; bem pelo contrário, elas haviam-me arrastado mais e mais para bem longe dele: pois que até a mais destrutiva expressão verbal nada mais era que parte integrante do tarefário quotidiano do artista."
Yukio Mishima, in "Sol e Aço" (太陽と鐡), 1967








Audio-visual para a posteridade: imagens do lendário debate opondo Mishima aos Zengaku'Ren, Frente Estudantil Unitária (de extrema-esquerda), Auditório de Yasuda, To'Dai (Universidade de Tóquio), 13 de Maio de 1969.





Os que me conhecem, e sobretudo aqueles que me conhecem bem, saberão da sentida reverência que nutro, desde miúdo, pela figura de Yukio Mishima (三島 由紀夫 - nom de plume de Hiraoka Kimitake, 平岡 公威, 14.01.1925 - 25.11.1970), personagem inolvidável e referência maior do Século XX Nipónico, e da influência que o mesmo teve no estreitar do elo sentimental que desde há muito me une ao Japão.


Escritor de assombroso génio - aclamado e celebrado pelos seus pares ainda em plena juventude, por três vezes candidato ao Prémio Nobel da Literatura (reconhecimento que perderia, dois anos antes do seu apoteótico suicídio por Seppuku, em Novembro de 1970, para o seu amigo de longa data e mentor, Yasunari Kawabata, 川端 康成, o qual viria, também ele, a suicidar-se, uns escassos dezasseis meses mais tarde, em Abril de 1972, por motivos muito provavelmente conexos com as circunstâncias da morte do primeiro) -, dramaturgo, encenador, cronista, Kendoshi e Renshi de Iaido, argumentista, produtor e actor ocasional em obras cinematográficas, Mishima tornar-se-ia, em larga medida, mais célebre pelo bizarro processo mental que o levou, num momento avançado da sua prodigiosa vida, a desenvolver uma peculiar obsessão privada pela aquisição de força física-musculada - "própria de um 'corpo heróico'" -, a par da apologia, algo desconcertante, de uma certa concepção - muito pessoal e deveras sui generis - de um Japão tradicionalista focado na figura central do Ten'O - literalmente o Soberano Celestial, mundanamente falando, Sua Majestade, o Imperador, e ao qual se referia como sendo este "a materialização, o símbolo último do Absolutamente Belo" -, tendo apelado, em obras de cariz panfletário e intervenções esporádicas em tribunas várias, à refundação e re-activacção dos valores da Ética Samurai e sobretudo das considerações que haviam presidido aos Shinpuren do Século XIX e aos Gekokujo dos anos 30 do Século XX...



Kawabata e Mishima, aquando da atribuição ao primeiro do Prémio Nobel da Literatura de 1968.


Pessoalmente, inclino-me a adoptar a posição mais benevolente, de que a busca, por parte de Mishima, ao longo da sua vida, e sobretudo nos anos finais da sua carreira, de uma "causa maior" pela qual se bater, terá as suas raízes num emaranhado de causas profundas e complexas, remontando à sua lúgubre e isolada infância, e que só o próprio poderia decifrar, mormente os milhares de páginas que biógrafos, académicos, psicanalistas e exegetas para todos os gostos dispensaram, ao longo das últimas quatro décadas, ao tema.


Mishima elaborou, entre 1960 e o seu suicídio uma década mais tarde, uma série de expedientes vários - se assim o possamos interpretar - entre obras de inegável valor literário, outras de gosto assaz duvidoso (lembremos "As Vozes Dos Mortos Heróicos" - "Eirei No Koe" - 英霊の聲 - de 1966), dramas de palco - como as suas "Modernas Peças Noh" e outras de matriz ocidental -, actuações em filmes de acção e a realização de pelo menos uma obra cinematográfica de sua inteira autoria, que, destinando-se não apenas a firmar o seu nome junto de uma larga audiência de apetites variados, deixava claramente transparecer, a par do que suspeitaríamos tratar-se de uma sede insaciável de notoriedade e protagonismo social e artístico, uma quimera maior em ser imortalizado como uma espécie nova de herói nacional, conceito que o próprio não teria concebido exactamente nestes termos, mas que podemos afirmar como se manifestando enquanto tal, da visão geral que o seu portfolio criativo desse período permite entender. De um outro prisma poderemos afirmar que Mishima, aspirando a uma 'morte heróica', almejava ser um símbolo eternizado, uma ponte de ligação entre a modernidade triunfante do seu tempo e um certo Japão mítico, glorificado nas páginas da História e da literatura clássica do seu país.


Atravessando quase incólume, os anos da Guerra na sua Tokyo natal, graduando-se em Setembro de 1944, com louvor e distinção, no Gakushu'in - o prestigiado e elitista Colégio dos Pares criado no início da Era Meiji como centro educativo para a descendência da nova aristocracia emergente de então - e assistindo atónito, nos meses seguintes, à voragem dos bombardeamentos em tapete que consumiriam a capital na última etapa do conflito - e cuja memória o marca profundamente, vindo, o tema dos bombardeamentos de Março de 1945, a tornar-se imagem recorrente nas suas obras -, o jovem Kimitake recebe a convocatória para se apresentar à inspecção militar em Fevereiro desse ano e submeter-se ao deveres de conscrição, precisamente nesse que era o momento mais crítico da Guerra e em que o Japão enfrentava não somente a iminência de uma invasão em grande escala do seu território pelas Forças Aliadas, mas também, e pela primeira vez na História, a própria possibilidade real de uma aniquilação total.
O destino heróico que o mancebo Hiraoka acalentara como fantasia dilecta da sua mocidade, 'uma morte gloriosa em combate (...) súbita, explosiva, sofrida, anónima entre camaradas' (entre as mais prováveis guias de marcha que poderiam nesta altura calhar a um rapaz da sua condição social e nível académico, seria uma que o levasse até Chiran, em Kagoshima, agora a mais activa base aérea dos Shinpu Tokubetsu Kogeki'Tai - os célebres Esquadrões Especiais de Ataque "os Ventos Divinos"... ) parecia agora mais próximo e inevitável que nunca...
Mas eis senão quando um estranho revés se opera de per si: tomado por uma febre abrasiva e súbita, o pálido e franzino Hiraoka Kimitake é observado por uma junta médica que o toma... por tuberculoso!... O próprio - certamente pela irreprimível interferência do mais humano dos instintos: o de auto-preservação - facilitara a conclusão do diagnóstico, forçando, na hora, uma tosse convulsa, e uma análise apressada ao seu sangue fazia o resto desta rábula...


Mishima escapava assim à última grande mobilização militar na História do Japão, fintando aquela que tomara como sendo a conclusão inadiável e óbvia de uma breve e efémera existência neste Mundo - tinha 20 anos de idade quando a Guerra acabou.


Ironia das ironias: Mishima passaria os meses finais da Guerra adstrito, no âmbito do regime de mobilização civil geral para o esforço de guerra, a um lugar de auxiliar industrial numa unidade de montagem de aviões de combate destinados, na sua maioria, a missões Kamikaze projectadas para o futuro - "a Fábrica do Grande Nada", como o próprio a haveria de apelidar sarcasticamente na sua primeira obra de grande tirada e sucesso, "Confissões De Uma Máscara", de 1948, obra largamente confessional, como o próprio título deixava antever, e onde a par de outras tantas inconfidências, Mishima, então um jovem universitário no término da sua licenciatura em Direito pela Universidade de Tóquio, dissertava despuduradamente sobre a mentira da "tuberculose" que havia engendrado ad hoc aquando da sua sujeição ao escrutínio da junta médica militar, e que o excluira da frente de combate.


E mormente o tom quase insolente que a sua escrita destilava acerca destes e de outros factos, Mishima deixava, porém, escapar ao longo da sua obra, um misto de encantamento e de profundo e genuíno auto-desprezo que tal golpe da fortuna lhe legara...


Esta sucessão encastelada de eventos, remontando até antes desse ominoso Verão de '45, revelar-se-ia determinante para uma apreciação minuciosa ainda que póstuma dos sentimentos dominantes e obsessões do escritor dessas afamadas "Confissões".


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O certo é que, o 'nacionalismo' de Mishima, tardio, quase anacrónico e mais teatral e fetichistico do que real, servindo sobretudo o auto-proclamado propósito (ultra-romântico, quantos o porão nestes termos) da necessidade de uma "morte heróica num corpo heróico", não obstante, colocava o autor de "O Templo Dourado" e da monumental tetralogia "O Mar Da Fertilidade", no final da década de 60, no pantanoso campo da ultra-direita dos Uyoku-Dantai e gente afim, alienando progressivamente o escritor - antes dilecto de audiências de best-sellers - dos circuitos mainstream, a cada ano que passava mais e mais embaraçados com as extravagantes diatribes estético-políticas do autor do texto original, realizador, produtor e protaganista da curta-metragem "Patriotismo" (憂国 - Yukoku), de 1966.




Mishima acerca da Ética Samurai.



II. Fantasia, Militância, Silêncio, Morte


O caso em si não poderia ter contornos piores, não fôsse o próprio Mishima no apogeu deste seu período 'terminal' levar a cabo a mais cabotina das suas encenações no palco do Mundo: a fundação, em Outubro/Novembro de 1968, dos Tatenokai (楯の会) ou Sociedade do Escudo (S.d.E.) - uma mílicia privada formada por um punhado de estudantes universitários de direita ultra-conservadora, na sua maioria oriundos do meio rural, recrutados sobretudo nos círculos académicos da grande Tokyo e agremiados em torno da sua pessoa, votando-se 'à defesa do ideal Imperial na hora da verdade, contra a incompatibilidade do Comunismo (...) e na última e decisiva batalha que será até à morte'.


Apresentados ao Mundo numa conferência de imprensa convocada para o efeito, em 4 de Novembro de 1968, perante uma plateia de repórteres estupefactos com tamanho aparato no mise-en-scéne (os 'cadetes' da S.d.E. apresentavam-se fardados em faustosos uniformes de gala, de côr alaranjada - ao que consta, concebidos pelo alfaite pessoal do General De Gaulle, a pedido, sob orientação, e a expensas do próprio Mishima...), não tardou para que os Tatenokai fizessem as manchettes jocosas da imprensa nipónica e internacional, que trataram logo de brindar a iniciativa com títulos como "O Novo Exército-A-Brincar Do Capitão Mishima".




Mas Mishima parecia não fazer caso do ridículo a que se expunha com o seu exibicionismo e extravagâncias, insistindo em dar um tom de solene seriedade às suas intervenções públicas de pretenso carácter político, comparando os Tatenokai, por exemplo, à Guarda Suíça do Vaticano - "Somos o mais pequeno exército do Mundo... e, acima de tudo, um exército espiritual" afirmara em certa ocasião perante uma fileira de olhares críticos...-, ou insistindo na necessidade de aquisição, pelo Japão, de um arsenal estratégico nuclear - posição que, por motivos óbvios, mais que soar a pura provocação ou simples agitprop, assumia um tom de quase-hostilidade aberta face às posições dominantes na esmagadora maioria dos sectores políticos e cívicos do Japão de então.




Por alturas da fundação do corpo dos Tatenokai, Mishima havia já - efeito de outras imprudências recentes - experimentado o trago amárgo desse desprezo crítico, com que o Japão de bons e delicados costumes e primaz temperança trata por regra os seus transgressores - esse mokusatsu tão exclusivamente japonês, um 'matar pelo silêncio' (黙殺 - mokusatsu: da combinação dos Kanji 'moku' - 黙/ silêncio - e 'satsu' 殺/matar) sempre tão certeiro aqui: pior que uma crítica depreciativa é a ausência pura e simples de qualquer crítica... - e não tardaria a aperceber-se do fechar do cêrco de silêncio e indiferença com que crítica, público e círculos de poder e influência, o votariam, a breve trecho, ao mais completo ostracismo e oblívio - e Mishima não sabia conviver com o silêncio em seu redor: mais publicidade requeria mais ruído...


Por altura do seu 44º aniversário, em Janeiro de 1969, Mishima interpretava a sua própria sina no curso dos eventos que o consternavam - e não tanto naqueles que se referiam directamente à sua pessoa, corroendo a sua carreira literária e artística e o seu prestígio e estatuto enquanto figura pública proeminente, mas sobretudo os que respeitavam à extrema tensão política que desde o ano anterior assolava o Japão e as suas ruas como não era visto nada assim havia perto de uma década. E neles antecipava a hora desse confronto cuja forma a tomar desconhecia ainda, mas que garantia estar iminente...





Ocupação pela facção radical do Zengaku'Ren/Zenkyoto (Frente Unida Estudantil) do Edifício Yasuda, To'Dai/Universidade de Tokyo, Dezembro de 1968 e confrontos. A 19 de Janeiro de 1969, 8500 homens da Força Especial Anti-Motim da Polícia Metropolitana de Tokyo, tomavam de assalto o edíficio ocupado pelo movimento estudantil radical quase um mês antes.


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III. Esse Maio de '69 - Mishima versus Zengaku'Ren



"Acima de tudo, a Via do Samurai reside numa consciência plena de que nunca sabemos o que virá a seguir, e num permanente questionar daquilo que se nos apresenta diante dos olhos, dia e noite. Vitória ou derrota são mero efeito da distribuição provisória de forças ou do acaso das circunstâncias. O processo pelo qual se emenda a vergonha é outro. E esse é tão só A Morte.
"Mesmo quando a derrota parece ser mais que certa, retalia! Nem bom-senso nem destreza são aqui chamados ao caso. Um homem íntegro não se perde a pensar na vitória ou na derrota. Ele lança-se intrépido numa morte irracional.
"Ao procederes assim, despertarás dos teus sonhos."

Yamamoto Tsunetomo, "Hagakure" (葉隠), circa 1710




Assalto da Força Anti-Motim da Polícia Metropolitana de Tokyo às instalações da To'Dai ocupadas pelos Zengaku'Ren/Zenkyoto, em 19 de Janeiro de 1969. Os Zenkyoto tinham, em Dezembro, feito vários reféns entre o corpo docente e administrativo da Universidade que mantinham em seu poder na altura da operação policial de resgate.


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A violência política e os tumúltos que marcaram o Japão entre Março de '68 e meados de 1969, excedem largamente o imaginário característico de outros movimentos sociais e rebeliões estudantis análogas noutros lugares do Mundo e na mesma época, sobretudo se e quando comparados aos do mais folclorizado Maio de '68 em França.


As motivações da Frente Estudantil Unitária Zengaku'Ren (全学連) e da sua facção mais radical, os Zenkyoto, que terão dado o leitmotiv para o extremar de posições e acções violentas levadas a cabo nesse ano, prendem-se indissociavelmente com um leque complexo de questões levantadas somente no espaço político-social do Japão e radicados na idiossincracia local, e aparte a pretensa filiação marxista-radical do movimento e a sua indelével semelhança com os Enragés de Nanterre, pouco ou nada teriam, de facto, em comum com os restantes grupos militantes estudantis do seu tempo, um pouco por todo esse Mundo Industrializado/ Capitalista fora. As suas causas eram outras e, entre estas, pontificava um profundo desprezo pela Instituição Imperial, objecto do mais encarniçado dos seus ódios.


E seria precisamente esse o tema dominante no extraordinário confronto ideológico que oporia os estudantes e activistas do Zenkyoto ao carismático líder dos Tatenokai, auto-proclamado "último reduto na defesa da Cultura e do Trono do Crisântemo contra a ameaça intolerável do Marxismo", numa única sessão levada a efeito nesse inesquecível 13 de Maio de 1969.



Assalto da Força Policial Anti-Motim ao Edifício Yasuda, Universidade de Tokyo (U.T.), em Janeiro de 1969. Outras imagens.


A iniciativa do debate partira do próprio Zengaku'Ren/Zenkyoto, e Mishima mal terá hesitado ao aceitar a generosidade de tal convite. Afinal seria então este o seu tão aguardado'momento da verdade'? O confronto final com os inimigos do Ten'O seria ali (Mishima receava mesmo ser morto no local, e adiante aí iremos), na sua To'Dai, a Universidade onde ingressara logo após a conclusão dos estudos liceais no Gakushu'in em '44 e que o vira ascender ao plano de estrela maior das Artes e Letras nipónicas - nenhum outro lugar poderia ter maior valor simbólico e maior apêlo emocional para Mishima do que essa To'Dai que lhe dera o rito de passagem de uma mocidade introvertida e atormentada para a vida adulta na ante-câmera dessa tão almejada imortalidade. Era como que um reencontro final com o seu passado.


John Nathan, na sua biografia de 1974, descreve os eventos desse Maio de '69 do seguinte modo:

"Os confrontos mais violentos haviam principiado em Março de 1968, quando a Faculdade de Ciências Médicas da U.T. entrara em greve. Em Novembro, o Reitor da Universidade demitira-se; pouco depois a facção radical do Zengaku'Ren, auto-intitulada Zenkyoto, ocupava o Edifício Yasuda no centro do campus universitário. Foram feitos vários reféns, e a tensão escalou até ao dia 19 de Janeiro de 1969, quando oito mil e quinhentos operacionais da Força Especial Anti-Motim da Polícia, armados até aos dentes, tomaram de assalto o edifício, desalojando os activistas do movimento estudantil. Mishima observara atentamente o desenrolar dos acontecimentos, não escondendo a sua admiração pelos estudantes barricados e pela sua aparente determinação na luta. Porém, quando o Edifício Yasuda foi tomado sem que se registásse uma única vítima mortal no decurso dos confrontos, Mishima mostrou-se repugnado. "Observai e lembrai," disse então aos seus cadetes da S.d.E., "no momento da verdade, não havia um único entre eles que estivesse pronto a ir até ao fim, um único que mostrásse acreditar realmente naquilo por que se batia e que se deixásse sequer ferir ao precipitar-se de uma janela ou que se atirásse contra uma espada." Aqui, como era seu hábito, a tónica era posta no elemento auto-destrutivo.


"Em Maio, a Frente Estudantil Unitária desafiou Mishima para um debate a realizar-se no seu baluarte, situado no campus universitário de Komaba, na U.T., e ele aceitou o repto. Para tanto havia que ter bravura que chegásse: estes mesmos estudantes haviam já demonstrado serem bem capazes de tomar reféns. E quando passou a constar que Mishima aceitara o repto dos Zenkyoto, a polícia prontificou-se a oferecer-lhe protecção na deslocação ao recinto do debate, caução que Mishima prontamente declinou. De igual modo, proibiu terminantemente os seus Tatenokai de o acompanhar. No dia agendado para o debate apresentou-se na entrada do auditório completamente só. Vestia calças desportivas de côr clara e um pólo preto. A sua única protecção contra um eventual atentado dirigido contra si era o tradicional haramaki, uma larga tira de tecido envolvendo a região abdominal e destinada a deflectir a eventual investida de uma lâmina assassina. Lá dentro, aguardavam-no cerca de dois mil estudantes do Zengaku'Ren/Zenkyoto que escutavam uma palestra introdutória. À entrada do auditório, Mishima deparou-se com um cartaz onde figurava uma caricatura de si representando-o como um "gorila moderno". Ao preparar a sua entrada junto à porta do auditório, Mishima certamente teria pressentido essa "real presença de um perigo" que tanta vezes invocara como sendo da mais cabal importância para a sobrevivência e "sobretudo em tempos de paz".







"O debate, que tomou duas horas e meia, acabou sendo em si mesmo uma espécie de anti-clímax. Não que a tensão tivesse em algum momento esmorecido: um número significativo de estudantes resistiu estoicamente ao carisma de Mishima e manteve uma postura desafiante, provocatória e mesmo insultuosa até ao fim. Mas a maioria parecia respeitá-lo, ainda que não vacilando nas suas convicções. Tornara-se evidente, quase desde o começo, que a audiência que Mishima ali enfrentáva não lhe era inteiramente hostil, tendo o primeiro interveniente se lhe dirigido fazendo uso do termo reverencial 'Sensei' (Mestre ou Doutor), e, logo em seguida, fazendo uma pausa e procurando suprimir o embaraço da 'gafe', justificou-se: "Acabo de usar a palavra 'Sensei' sem sequer pensar e isto dá que pensar (risos)... ...Contudo, parece-me que... Mishima-san merece bem mais o título de 'Sensei' que a maioria desses 'educadores' que se pavoneiam pela To'Dai nos tempos que correm, por isso queiram ter a bondade de aceitar as minhas desculpas por ter usado inadvertidamente o título 'Sensei'." O apêlo foi saudado com um vigoroso aplauso." (VER: vídeo no início deste artigo)
"Uma vez que o movimento estudantil se mostrava capaz de ser 'lógico' na mesma medida de arbitrariedade em que Mishima esgrimia a sua própria 'lógica', uma vasta camada do debate afigura-se impenetrável. Os momentos mais interessantes são claramente aqueles em que Mishima procura persuadir ou converter os seus ouvintes. O Ten'O, assim Mishima pregava, era "precisamente o símbolo e fonte do ímpeto revolucionário que os Zenkyoto tanto almejavam", mais, "a única base para uma autêntica Revolução Nipónica." Ao referir-se ao Ten'O, Mishima como é evidente não se referia ao Imperador Showa (ainda o soberano nessa altura), mas tão somente à instituição, ao conceito cultural do 'Imperador'. "Se ao menos vós pronunciásseis correctamente o nome de Sua Majestade," afirma Mishima na mais citada passagem do debate, "eu de bom grado estender-vos-ia as minhas mãos, mas uma vez que sois incapazes de o fazer o que eu digo é tão só 'Morte!'. É tão simples quanto isto."
"Naturalmente, os estudantes na sua generalidade nem por um instante se deixaram persuadir pela ideia de que o Ten'O fôsse um símbolo do que quer que fôsse para além de um conceito alienante da reacção exploradora. Essencialmente o debate terminou num impasse, com ambas as partes aquiescendo na conclusão de que ambos eram "inimigos lógicos". A intervenção mais emotiva de Mishima fez-se ouvir já bem próximo do fim, quando a tensão dessa tarde já o consumia e ele se apercebe que já não havia muito por onde argumentar em favor do Ten'O. De súbito, dirigindo-se à audiência, solicitou que o ouvissem acerca de um "sentimento muito pessoal":
"Vós bem sabeis que eu cresci durante a Guerra, e igualmente sabeis que eu fui conduzido à presença do Ten'O, quando terminei os meus estudos liceais; eu vi com os meus olhos Sua Majestade ali sentada diante de mim, por três horas, sem se mexer um milímetro! como uma estátua, durante a nossa cerimónia de graduação. E no final da cerimónia eu recebi das mãos desse Imperador um simples relógio, e a verdade é que ainda hoje carrego bem dentro de mim esse profundo sentimento de gratidão para com Ele. Não era minha intenção falar aqui hoje sobre isto, e não faço questão em tornar a falar sobre este assunto (risos), mas há coisas como estas na vida de um homem, e eu não tenho como negá-lo: Ele estava esplêndido, sabem?, Sua Majestade, o Ten'O, esteve magnífico nesse dia!"
"Mishima não tornaria a mencionar este evento e correlativos sentimentos, mas certamente havia ali uma verdade sólida. Fôsse qual fôsse o cepticismo e a medida do recolhimento desse jovem de 19 anos que ele teria sido em Fevereiro de 1944, ele jamais poderia ter permanecido imúne ao sentimento de Honra e à profunda impressão que certamente o tomaram no momento em que recebera um relógio de prata das mãos de Hirohito. Não que isto explique a devoção posteriormente depositada nesse 'Imperador' lírico e abstracto, mas esta versão dos factos sugere que o Imperador era, para Mishima, algo mais que um simples aparato a que ele lançara mão, na hora de escolher uma 'causa nobre' pela qual se dispusésse a sacrificar a sua vida."
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Cena da obra semi-documental da autoria de Paul Schraeder "Mishima: A Life In Four Chapters", de 1985, ilustrando o momento do debate de Maio de '69.


Também Henry Scott Stokes, à época destes eventos correspondente do The Times em Tokyo e amigo e convidado regular de Mishima junto do seu círculo familiar, acrescenta alguns detalhes de interesse ao desfecho desta história, e sobretudo as transcrições de algumas intervenções do dia ilustrando não apenas a frescura de espírito e bom-humor de Mishima nessa tarde, mas sobretudo o surpreendente interesse que os Zengaku'Ren/Zenkyoto iam mostrando, ao longo do debate, no tema do Imperador (VER: vídeo no início deste artigo):




Estudante: "Mishima escreve que se farta acerca do Imperador. A razão de tanto alarde é o facto de o Imperador 'não existir'. A sua 'não- existência' constitui o 'Absolutamente Belo' a que Mishima tanto se refere. Afinal de contas, porque se faz ele de parvo o tempo todo? Decididamente Mishima deveria confinar-se à Estética. Em vez disso pavoneia-se entre nós e assim lá vai destruindo esse 'Belo-Em-Absoluto' que o Imperador encarna."


Mishima: "O patriotismo dos seus reparos lisonjeia-me!... Pretende conservar essa imagem tão bonita de sua Sua Majestade e para o efeito repreende-me advertindo-me que me confine aos meus estudos..." (risos)


Outro estudante: "Eu gostaria de o inquirir acerca do Imperador. Se por acaso suceder que ele se apaixone por outra mulher que não a Imperatriz, que deveria ele fazer? Afinal ele já sofre tantas restrições!? Há que ser complacente, não?"


Mishima: "Eu sinceramente sou de opinião de que Sua Majestade devia ter uma amante..." (risos)



E adiante conclui:
"Mishima tivera o seu instante de paranóia quando se aproximava do auditório em Komaba, temendo que os estudantes o cercassem e assassinassem ali mesmo on the spot. Mais tarde ele diria: "Eu estava apavorado como se me fossem lançar numa jaula de leões, mas no final deu-me um prazer enorme estar ali. Eu constato que eu e eles temos ao fim e ao cabo muito mais em comum do que aquilo que aparentamos - uma ideologia rigorosa e um gosto indisfarçado pela violência física, por exemplo. Eles, como eu, representam uma nova espécie no Japão de hoje. Eu sinto que tenho um elo de camaradagem com eles. Nós somos camaradas separados por uma vedação de arame-farpado. Sorrimos de igual para igual, mas não estamos ao alcance de um beijo." Num seu outro comentário: "Aquilo por que eu me bato e aquilo por que os Zengaku'Ren se batem é quase idêntico. Ambos temos as mesmas cartas na mesa, mas eu tenho um 'joker' - o Imperador."


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IV. Epitáfio: Todos esses rios que fluem para o mesmo mar...





"Queria fazer da minha vida um poema"


Mishima


"Um suicídio é algo premeditado no silêncio de um coração, como uma obra de arte."


Camus


"O que caracteriza o inferno é o facto de nele se distinguir tudo,
até ao mais ínfimo detalhe, com a mais extrema nitidez, e tudo isto
no seio da noite mais negra."


Mishima





25.11.1970


Como Henry Scott Stokes relata em "The Life And Death Of Yukio Mishima", no final da sua vida, Mishima entrara em depressão profunda por efeito de uma crescente sensação de esgotamento sobretudo no que se referia à qualidade e fluidez da sua escrita, afirmando "estar prestes a atingir o ponto da não-comunicação" e Stokes menciona mesmo uma sua carta datada de 1968, onde Mishima se refere a si mesmo como "fracasso enquanto novelista" e onde acusa o seu declínio enquanto autor, como se tratando de um facto consumado.


Não causa, pois, estranheza de maior que Mishima, nesse último acto da peça teatral viva em que se convertera, fizésse a acção acelarar o ritmo da trama como que forçando o incomunicável a falar por si mesmo; tendo sido destituído do mais elementar direito a controlar a sua própria existência, direito esse ao controle que lhe havia sido tão caro, e sabendo de antemão que era aquele o desfecho antecipado da peça, quisesse que esta excedesse os limites do seu palco e se extravazasse adentro olhos e ouvidos de um público que se entretera no primeiro e segundo actos da peça, a premiara com o seu sentido aplauso e risos, mas que agora ou bocejava ou simplesmente perdera o interesse ou se perguntava sobre onde afinal ia aquilo parar. O adepto do Ten'O, o Comandante dos Tatenokai, o orador carismático e apaixonado do Auditório de Komaba enfrentando com jovial sentido de humor os estudantes do Zengaku'Ren, seriam, estes, personagens de recurso num último fôlego que tornásse esta peça inapagável, de uma vez por todas, na memória de todos quantos a haviam visto, quando chegásse o tal fim explosivo e imprevisível? Parece-me antes que Mishima teria desejado que esta peça jamais terminásse... Afinal ele considerava-se a si mesmo e acima de tudo, um homem do teatro - "se eu pudesse, só fazia teatro", terá afirmado algures no tempo.


Pouco tempo antes dessa manhã de 25 de Novembro de 1970, Mishima colaborara na organização de uma exposição sobre a sua pessoa, inaugurada em Tokyo a 12 desse mês, na qual o próprio insistiu que os conteúdos exibidos fossem distribuídos por Quatro Rios alegóricos: o 'Rio da Escrita', o 'Rio do Teatro', o 'Rio do Corpo' e o 'Rio da Acção'. Cada um destes 'rios' representava uma dimensão essencial da sua vida atribulada: a Escrita enquanto meio de acesso ao Mundo, o Teatro a sua maior paixão, o Corpo, invólucro de um destino que teimava em ser heróico, a Acção - a via sacra da heroicidade...
Era nos fluxos incógnitos desses Quatro Rios que Mishima lançara a sua vida. Os rios cruzavam-se, comungavam das águas de uns e de outros, mas no final todos iam dar a esse mesmo mar misterioso, insondável.
*
E ainda tornando a Scott-Stokes, o mesmo escrevia pouco tempo após o incidente de Ichigaya e o seu suicídio por seppuku, que certamente um dia alguém escreveria uma psicobiografia de Yukio Mishima comparável ao clássico de Jean Delay, "La Jeunesse D'André Gide", e concluía: "(...ao escrever sobre Mishima) ter-me-ia dado por satisfeito caso houvesse obtido uma simples pista que fôsse que me explicasse as circunstâncias da sua morte. Agora ao terminar, eu recordo essa nota final deixada na sua secretária a 25 de Novembro de 1970: "A vida humana é limitada, mas eu só queria viver para sempre."




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Bibliografia:
  • Mishima Yukio, "Sun And Steel", Kodansha, Tokyo, 1970
  • Mishima Yukio, "Confessions Of A Mask", New Directions, N.Y., 1958
  • Mishima Yukio, "The Temple Of The Golden Pavillion", Vintage, London, 2001
  • Mishima Yukio, "The Samurai Ethic And Modern Japan", Tuttle, Tokyo, 1978
  • Nathan, John, "Mishima - A Biography", Tuttle, Boston, 2004
  • Stokes, Henry Scott, "The Life And Death Of Yukio Mishima", Tuttle, London, 2003
  • Yamamoto Tsunetomo, "Hagakure" (versão bilingue em Japonês Moderno/Inglês, sob a direcção de Matsumoto Michihiro, Omiya Shiro e William Scott Wilson), Kodansha, Tokyo, 2005





Luís Filipe Afonso
Origem: The Last Nan Ban Jin
http://ultimonanbanjin.blogspot.com/

1 comment:

Nicolas said...

Esses japoneses são loucos, é o país das bizarrices, eu admiro muitíssimo a cultura nipônica, mas é muita loucura.