A obra
Ao aparecer num terreno baldio, “sombrio, úmido e pegajoso”, o gato, narrador deste romance, depois de passar por algumas poucas adversidades, acaba parando numa casa onde é acolhido por Chinno Kushami, o professor mal-humorado e estagnado em sua completa falta de perspectiva. Ridiculariza de maneira demolidora a vida da intelectualidade do Japão da Era Meiji, mostrando a fragilidade do professor e daqueles que o cercam. Sugerindo-se sempre como um ser de raça superior, o gato, com sua pesada munição e ares de dândi, não poupa nada nem ninguém. Sua linguagem é carregada de sarcasmo quando o assunto é o ser humano. Mesmo quando há uma ternura esta é impregnada de deboche.
Soseki investe, por meio do olhar de fora, recurso que usa habilmente, em profundas análises psicológicas do ser humano – influenciado por William James (1842-1910) e suas pesquisas sobre o subconsciente. Todos os personagens passam pelo crivo do felino que leva o leitor a uma jocosa aventura, chamando-o para ser seu cúmplice na tarefa de desvendar o trágico cinismo interior de cada personagem e seu mundo repleto de mesquinhez, mentiras, vaidades e desolação.
Muitas vezes trazendo para o texto idéias de escritores e filósofos do passado ou contemporâneos, Soseki propõe uma reformulação do modo japonês de escrever e pensar, a partir do contato com o pensamento e os costumes do Ocidente. Essa reformulação vem ao encontro das mudanças efetuadas na Era Meiji (1868-1912), quando o Japão passou por reestruturações políticas, econômicas e sociais, tornando-se potência mundial.
Publicado inicialmente em forma de capítulos no Hototogisu, importante jornal literário da época, e lançado em 1905, Eu sou um gato é a estréia literária de Natsume Soseki e uma das primeiras faturas da renovação modernista da literatura japonesa. Com este livro, o autor atingiu imenso sucesso de público e crítica.
Além de nos levar a reflexões sobre a condição contraditória e quebradiça do ser humano diante dos eventos diários, esta é uma obra que nos proporciona ótimos momentos de diversão, características que mantêm o poder de atração desse importante livro para sucessivas gerações de leitores no Japão e no exterior.
Trecho
“Sou um felino que reside com um acadêmico capaz de atirar sobre sua mesa de trabalho um livro de Epicteto após lê-lo. O espírito cavalheiresco existente na ponta de meu rabo é mais que suficiente para embarcar nessa expedição. Não se trata de nenhuma retribuição devida a Kangetsu, nem de uma ação para a consecução de simples objetivos individuais de alguém de sangue quente. Exagerando um pouco, é uma admirável e louvável ação que busca concretizar a vontade celestial de amor pela justiça e imparcialidade.”
“Os humanos têm quatro patas, mas se dão ao luxo de utilizar apenas duas. Poderiam andar mais depressa se usassem todas, mas se contentam apenas com um par, deixando as restantes estupidamente penduradas como bacalhaus postos a secar. Vê-se que os humanos são muito mais desocupados que nós gatos e é possível entender a razão de se entregarem a tantas idiotices para preencher seu tempo. O mais curioso é que esses ociosos circulam por aí não apenas afirmando sempre estarem muito ocupados, mas com uma fisionomia que aparenta estarem atarefados e impacientes, como se fossem ter uma estafa de tanto trabalhar. Ao me verem, alguns deles afirmam como seria agradável ter uma vida sem aporrinhações igual à minha. Por que então não buscam transformar as próprias vidas nesse sentido? Ninguém lhes exige que se ocupem de uma tal forma. Encher-se de afazeres para depois reclamar estar sofrendo por não dar conta do excesso de trabalho é o mesmo que acender uma fogueira para depois se lamentar do calor. No dia em que nós felinos inventarmos vinte maneiras diferentes de cortar nossos pêlos, certamente nossa tranqüilidade acabará.”
“Havia na Grécia antiga um escritor chamado Ésquilo. Esse homem possuía o tipo de cabeça comum aos acadêmicos e escritores. Quero dizer com isso que ele era careca. A razão de um crânio se tornar careca é, sem dúvida, a perda de vitalidade dos cabelos devido à má nutrição. Os acadêmicos e escritores são os que mais usam a cabeça e, em geral, vivem na pobreza. Portanto, suas cabeças são todas mal nutridas e carecas.”
“Alguns leitores devem acreditar que tudo o que escrevo não passa de invencionice, mas não sou um gato tão irresponsável. Cada palavra ou sentença tem incorporado um grande princípio filosófico cósmico e, quando postas em seqüência, tornam-se contextualmente coerentes do início ao fim, e um texto que se lia sem nenhuma pretensão por ser considerado insignificante sofre uma súbita transformação, assim como se intrincados termos budistas se tornassem de simples compreensão. Jamais deve-se ter o atrevimento de ler, correndo os olhos por cinco ou seis linhas de uma só vez, enquanto se está deitado de pernas esticadas.”
“Essa afirmação demonstra o grau de idiotice de meu amo, mas por outro lado não deixa de existir nela também uma certa lógica. Meu amo tem o hábito de valorizar aquilo que não entende. Isso não é algo necessariamente peculiar apenas a ele. Existe uma certa dignidade no imensurável e há algo impossível de se menosprezar dissimulado no incompreensível. Por isso, enquanto o homem comum se dá ares de entender aquilo que na realidade não compreende, os acadêmicos explanam o que compreendem como se não o houvessem entendido. É de conhecimento geral que nos cursos universitários os professores que discorrem sobre assuntos incompreensíveis se tornam populares e aqueles que explicam claramente o que sabem não são apreciados.”
Tradução de Jefferson José Teixeira
488 p.
16 x 23 cm
ISBN: 978-85-7448-138-8
R$ 64,00
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