13.5.07

Kafka à Beira-Mar

Haruki Murakami村上春樹

Ergues as mãos diante dos teus olhos, mas não tens luz suficiente para ver. Está demasiado escuro. Tanto dentro como fora de ti.


É um livro sobre a condição humana e a sua liberdade. Liberdade de nos impormos a nossa liberdade, fazendo dela uma lei. Como Kafka Tamura quando decide fugir de casa no dia do seu aniversário de quinze anos à procura de uma liberdade para a qual tinha trabalhado desde que se conhecera. Com um pai excêntrico que vive num mundo de professias assombrosas com as suas esculturas e um passado povoado pelas reminiscências quase fantasmagóricas da sua mãe que o deixou com a irmã aos quatro anos. A sua existência em Nakano中野区, onde crescera, estava a atingir os limites do suporável e por isso partir parecia uma boa solução para o recomeço de uma construção do mundo a que pudesse chamar exclusivamente sua e para a evasão às leis e aos limites permanentemente impostos pela sociedade e pelas expectativas individuais.
Takamatsu高松市, soava como um bom destino, estrategicamente falando. Para além da compontente aleatória da escolha que descartava eventuais procuras policiais, Tamura conhecia uma pequena biblioteca privada, muito acolhedora, onde pretendia passar o resto da vida que avistava para lá dos seus quize anos. Só que nada era tão simples e afinal, não possuia tanta aleatoriedade como poderia aparentar…
Paralelamente, é-nos dada a conhecer a história de Nakata, o velho que fala com gatos e faz caír sanguessugas e peixes do céu. A sua história é-nos revelada como sendo uma criança que cresce afectada por um misterioso incidente na sua infância durante o período de guerra, incidente durante o qual todos os colegas de turma desmaiam simultaneamente excepto a professora que os levou num passeio pela montanha. Semi-renegado pelos pais, vive a sua vida em ostracização de forma simples e nunca tendo a capacidade de sentir sentimentos negativo como a frustração ou o ódio e atinge a velhice analfabeto e desempregado, sustentando-se com a mísera pensão do governo e o part-time de encontrar gatos, uma vez que consegue falar com eles.
A partir desta base de personagens resta todo o invólucro que envolve o mundo real no universo do sonho e o mundo carnal nas entranhas do espírito.
Editado em Portugal pela CasaDasLetras, tradução de Maria João Lourenço
Tamura envolve-se num conlifo edipiano profetizado pelo pai. Esse conflito é desenvolvido no pano de fundo de uma referência explícita ao Genji Monogatari de Murasaki Shikibu (ver artigo). A alusão a um espírito gerado em vida pela impetuosidade do sentimento reveste toda a história de ancestrais alusões literárias, reforçadas pelos reflexos introspectivos de Oshima, seu colega e princípal protector e confidente durante o refúgio em Shikoku 四国.
A obra reveste-se de uma constante significação bipolar entre a ideia de liberdade e de responsabilidade. A ideia de sonho e de prisão. Quando Tamura decide sonhar ele torna-se absolutamente responsável pelas consequências (tanto abstractas como concretas) dos seus sonhos e entre a sua vontade e a sua fuga existe a descoberta do mundo. Este livro parece aproximar-se mais do surrealismo de Kobo do que do realismo sólido de Mishima ou Tanizaki.
Murakami utiliza uma narração de tom ora naturalista, ora surreal, criando uma realidade de símbolos desconcertante.
A alusão a Kafka é evidentemente voluntária, fazendo a representação da forma como as personagens se sentem impotentes na sua condição, presas no seu corpo, vítimas da irregularidade do mundo e/ou de um suposto destino (princilamente por parte da personagem de Saeki-San). Para além disso, Kafka significa "corvo" em checo, nome do alter-ego de Tamura a quem ele recorre em momentos mais fulcrais da história.

Por entre tudo isto, existe a sempre aliciante temática – do ponto de vista mediático - das descobertas sexuais de Tamura, que de resto não me parecem ter um principal destaque, enquadram-se na sua descoberta geral de si próprio e do que o rodeia, com naturalidade.
A erudição de Murakami não deixa, no entanto, de interfir na intenção do autor. Exemplo disso será, possivelmente, o camionista que ajuda Nakata a chegar a Shikoku 四国, que é representativo de uma personagem tipo de uma certa classe menos priveligiada e com um total desinteresse pelo que o rodeia mas que, no entanto, parece ter demasiada facilidade em ceder à compreensão intelectual do mundo – o que de resto, me parece uma visão demasiado optimista e idealizada de Murakami. Uma personagem menos conseguida ou então um reforço na projecção da personagem de Nakata pela contraposição. Por exemplo, Nakata não sabia ler e por isso nunca tinha entrado numa biblioteca, mas o que é certo é que grande parte das pessoas sem problemas de alfabetização também não o fazem de qualquer maneira.
Nakata era desprovido de potencial cognitivo mas a sua vontade de mudar o mundo e de encarar a vida de uma maneira ética, positiva, justa e com valores sólidos conferia-lhe o patamar de pessoa única e especial. Porque afinal, quantos não possuem as maiores capacidades cognitivas do mundo e nunca mudam nada? Quantos não se recostam à conformidade e à banalidade ainda que apetrechados dos melhores veículos para reverter esse processo?
Julgar ou moralizar de uma forma casual e ignorante confere uma falsa sensação de preenchimento às pessoas que não sabem lidar com algo real para além do seu vazio interior. Em nenhum momento Oshima emite uma opinião moralizadora.
No fim do livro ficam perguntas por responder e acontecimentos por interpretar.

A base do entendimento espiritual efectivo percorre a narração em detrimento de permanentes julgamentos inócuos. Acho que é isto que transpõe as páginas deste livro: algo que está para além da própria narrativa e que nos involve com a sua imensa e permanente metáfora. É isso que torna o livro tão intimista e tão pessoal, o leitor é convidado a transpor parte de si para o abrigo desta tempestade de símbolos.

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3 comments:

Anonymous said...

Excelente comentário. Parabéns!

Anonymous said...

おもしろいです。おめでとう!

Ana Cardoso said...

eu sabia que ia encontrar alguma coisa dele aqui neste blogue. adoro o site do autor. e estou a adorar o livro, apesar de recear não conseguir desvendar todos os enigmas, pois pelo comentário vejo que muitas coisas ficarão sem reposta.
Por exemplo, o que aconteceu à professora depois da revelação?
acho o personagem Nakata mesmo bem conseguido e as saídas dele durante a viagem para Takamatsu provocam uma certa vergonha. A voz interna dele é bem inteligente, mas quando ele exterioriza os pensamentos parece tudo tão parvo. é uma sensação que tenho tido durante a leitura.