19.5.07

Serpentes e Piercings


Hitomi Kanehara 金原 ひとみ



Devo dizer-vos que o li de um fôlego. São só 120 páginas, é verdade. Mas a escrita é escorreita e o clima que cria algo assustador. Durante a noite, julguei ter febre, o que seria fácil, dado estar com uma carga de gripe tremenda. Mas não era febre dessa, era febre provocada pela leitura.O livro chama-se “Serpentes e Piercings” e é escrito por uma jovem japonesa, Hitomi Kanehara. Fixem o nome, vale a pena. Saiu de casa adolescente, aos 11 anos deixou a escola, viveu como quis, começou a escrever e a enviar por mail ao pai o que ia escrevendo. Este, que era tradutor de profissão, foi dando conselhos e burilando ao longe a escrita. Aos 22 anos escreveu “Serpentes e Piercings” que ganhou o prémio literário mais importante do Japão. Traduzido em 20 línguas, vendendo milhões, dizem que se trata de um livro de culto. Não sei. Sei que o li e me marcou profundamente.




120 páginas de permanente angústia, mas de uma angústia que se distância muito da nossa ocidental angústia. Aqui há uma corrida para o abismo, mas uma corrida que se passa nos "bas fonds" de Tóquio, por entre desempregadas e "gangsters", entre "barbies" e "punks", mas com uma elegância de comportamento que por vezes surpreende. A violência física e psicológica é a maior, mas nada se passa sem um toque de elegância. Elegância, será o termo? Faz-me lembrar os filmes da minha infância, Fu Manchu e quejandos, que matavam e torturavam com as mãos sobre o peito e um sorriso mefistofélico nos olhos. Aí havia ironia, aqui há apenas desespero. Acredito que rapidamente passe a cinema: a escrita é altamente visual, pede imagens.


Lui tem dezanove anos, trabalha esporadicamente como “acompanhante”, é profundamente rigorosa e cumpridora no seu trabalho, mas nada a entusiasma na vida. É considerada uma “barbie”, até encontrar Ama, um jovem feio e magro, num bar "punk". Ele tem a língua bifurcada, e tatuagens no corpo. Um dragão. Ela fica seduzida por esse rapaz e vai com ele. Para a cama e para a casa de Shiba, que a prepara para ter igualmente a língua bifurcada. Mas Shiba leva-a também para a cama, e para relações sadomasoquistas que têm a dor e a morte como horizonte. Lui deixa quase de comer e bebe. Bebe sem parar.




São jovens a que a normalidade da vida pouco diz e que só no diálogo com a dor mais intensa se sentem vivos. Esta relação a três tem rápido desfecho mas revela-se traumática. Para os protagonistas desta aventura de vida sobre o fio da navalha, mas também para nós, simples leitores. O romance de Hitomi Kenehara não nos larga a cabeça e a incomodidade é total. Mas a escrita é realmente fascinante, límpida, na sua transparência, suave, na forma como desliza, forte e intensa, na imaginação ou vivência que destila, mas elegante e ágil no estilo. Ruy Murakami disse: “Uma interpretação radical do nosso tempo.” É verdade. Mas que tempo é este?





Dois excertos de “Serpentes e Piercings”:


(..) Peguei na mala para me vir embora e depois Shiba-san virou-se subitamente para mim. Parei.- O que foi?- Acho que sou capaz de ser um filho de Deus - disse ele sem mudar de expressão.- Filho de Deus? Isso não é o nome de um filme reles de série B?- Não. Pensa nisso. Deus só pode ser um sádico, para ter dado vida às pessoas.- Então estás a dizer que a Maria era masoquista.- Sim, acho que sim - murmurou Shiba-san, e voltou-se de novo para a prateleira. Peguei na mala e saí de trás do balcão.- Queres comer alguma coisa antes de ires?- Não, o Ama deve estar a chegar a casa.- Está bem. Então depois falamos - deu-me uma palmadinha na cabeça. Eu segurei-lhe no braço direito e acariciei o Kirin.- Vou fazer-te um desenho fixe - disse ele.Sorri, acenei e saí. Lá fora, o Sol estava a pôr-see o ar era tão fresco que quase sufoquei. Apanhei o comboio até casa de Ama.



O passeio de lojas, da estação até casa, estava demasiado cheio de famílias. Na verdade, o som de todas aquelas vozes deu-me von­tade de vomitar. Uma criança embateu contra mim e a mãe fingiu não reparar. Mas eu fitei o miúdo, até que ele ergueu os olhos e me viu. Quando o nosso olhar se cruzou, juro que ele estava quase a chorar, por isso limitei-me a abanar a cabeça num gesto de desaprovação e continuei a andar. Não queria viver neste universo. Queria viver temerariamente e não deixar para trás nada a não ser cinzas, neste mundo sombrio e monótono.(…) Afinal de contas, não fazia sentido estar à espera de uma solução quando nem sequer tinha um proble­ma. A vida parecia-me vazia, mais nada. Acordava de manhã, despedia-me de Ama, depois voltava a adormecer, praticamente todos os dias. De vez em quando, saía e trabalhava um pouco, às vezes ia fazer sexo com Shiba-san ou encontrava-me com amigos, mas, fizesse o que fizesse, acabava sempre por me sentir em baixo. Quando Ama chegava a casa, à noite, saíamos para jantar e partilhávamos uma travessa de qualquer coisa, regada com várias bebidas. Depois voltávamos para casa e continuávamos a beber. Pen­sei se estaria a tornar-me alcoólica. Ama também estava preocupado comigo.




Andava sempre de roda de mim e fazia o que podia para tentar animar-me, falando excitadamente sobre várias coisas. Depois, quando via que não resultava, desatava a chorar, per­guntando «Porquê? Porquê?» e dizendo uma e outra vez que se sentia magoado e zangado.Vê-lo assim dava-me vontade de corresponder aos sentimentos dele, mas, sempre que uma peque­na semente de esperança ganhava raízes dentro de mim e começava a crescer, era esmagada por uma forte descarga de auto-desprezo. Em suma, não havia simplesmente luz. A minha vida e o meu futuro eram negros como breu e eu não conseguia ver nada ao fundo do túnel. Não que antes disso esperasse gran­des coisas para mim, simplesmente agora conseguia imaginar-me claramente a aparecer morta numa sar­jeta qualquer, e nem sequer tinha energia para me rir destes pensamentos.




Pelo menos, antes de conhe­cer Ama, sempre estivera preparada para vender o meu corpo se as coisas chegassem a esse ponto. Mas agora não conseguia forçar-me a fazer mais nada senão dormir e comer. Na verdade, acho que prefe­ria morrer do que sair com homens de meia-idade nojentos. Não sei o que seria melhor - trabalhar como prostituta para viver, ou morrer para não ter de trabalhar como prostituta?



Diria que esta última alternativa seria a escolhida por uma mente saudá­vel, mas, por outro lado, estar morto não tem nada de saudável. Seja como for, dizem que as mulheres sexualmente activas têm melhor pele. Não que eu me ralasse muito com a minha saúde.No dia em que alarguei o buraco na língua para um calibre quatro, deitei muito sangue e não conse­guia forçar-me a comer, portanto bebi apenas cer­veja. Ama disse-me que eu estava a apressar dema­siado o buraco, mas não me importei - eu estava com pressa. Claro, não estava propriamente a tentar cum­prir um prazo, nem tinha nenhuma doença termi­nal. Simplesmente tinha a sensação de que o tempo estava a esgotar-se. Talvez haja alturas na vida em que as coisas têm de ser apressadas.- Alguma vez sentes que queres morrer? – perguntou Ama do nada, uma noite, quando voltávamos para casa depois de jantar.- Constantemente – respondi.










“Serpentes e Piercings”, de Hitomi Kanehara, Ed. Caderno.




Lauro António

5 comments:

Lauro António said...

Sara, obrigado pela referência. Julgo que terá interesse ir visitar
http://detesto-sopa.blogspot.com/2007/05/108-murakami-e-o-carneiro-desaparecido.html
Um beijo.

Anonymous said...
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Sara F. Costa said...

Lauro António, quem agradece somos nós. O artigo sobre a obra de Murakami também é de sua autoria? Também gostariamos de fazer referência.

Em relação ao livro da Hitomi, é sem dúvida um livro niilista, acerca do vazio de valores deixado pelo actual estado social onde, nas palavras da autora "a escravatura se mascara de sucesso". É sem dúvida um livro violento sobre a youth culture e a forma vazia como sobrevive. Achei bastante interessante embora ache estranho que não tenha havido uma maior concorrência em relação ao Prémio Akutagawa... mas também não estou a par das restantes obras concorrentes...

Jorge said...

Bom blog!
Parabéns.

Unknown said...

Amei o site, estão de parabéns.
É uma pena que muitos livros de literatura japonesa não são traduzidos aqui no Brasil ( e olha que somos a maior colônia de japoneses na américa latina). Sinto isto pelo fato de ser estudante de lingua japonesa. No entanto, teu blog se tornou referência para mim.

Mais uma vez! Parabéns

Abraços