Longe de mim afirmar que “Através da Vidraça” é um mau livro ou uma má escrita, mas enquadra-se na consciência da proximidade da morte que despertara em Soseki em 1915, um ano antes do seu falecimento. O livro é uma compilação de uma série de descrições de episódios da vida de Soseki e das suas memórias naquilo que se podem considerar 39 ensaios. Quando remota à sua infância faz o retrato de um Japão em movimento e em reconstrução (em pleno período Meiji).
“Através da Vidraça” é um livro onde perpassa uma imensa melancolia e uma nostalgia latente. Deixa-nos percepcionar algumas vivências do autor mas não nos deixa penetrar em profundidade na sua personalidade. O que é curioso é que me parece um livro que não se adequará possivelmente a um primeiro contacto com a escrita do autor mas, no entanto, é o único livro de Soseki alguma vez traduzido em português e posto à venda a circular em Portugal (pela editora USUS numa edição de 1993). A escolha parece aleatória, pois muitas das grandes e célebres obras do autor permanecem-nos inacessíveis tais como Watashi wa Neko de Aru (Eu sou um gato); Sorekara (E Depois, 1909) Bungaku Hyoron (Crítica Literária, 1909), etc.
Neste livro, as suas reflexões passam desde coisas mais trágicas, como um assalto à casa do seu pai; até episódios mais humorísticos ou quotidianos a recordação dos seus irmãos a planearem encontros com gueixas, as suas irmãs que tinham que se levantar de madrugada para irem assistir ao teatro Kabuki, e a forma como a paisagem do seu bairro se foi transformando ao longo da sua vida (num período de profunda transformação), as prendas dos leitores chatos, a vez em que comprou um manuscrito de um autor chinês a um colega mas que depois descobriu que aquilo não pertencia ao colega. Enfim, Soseki não se demonstra revoltado, não lança farpas como outrora em obras mais antigas, simplesmente se deixa invadir por um sentimento taciturno derivado da sua doença – uma úlcera no estômago – que acaba por surgir como a evidência da morte. De entre alguns trechos, os seus tormentos e as perturbações da sua sensibilidade e sabedoria profunda de quem compreende que há questões que nunca serão totalmente claras:
“Mas poderei dizer que os outros são todos uns refinados e mentirosos e, desde logo, não prestar a mínima atenção nem dar qualquer crédito à sua palavra? Poderei mesmo reter o contrário do que me dizem, pensar que esse acto é inteligente e encontrar aí um pouco de paz? Arrisco-me a interpretar mal os outros, no entanto, é preciso que esteja preparado desde o início para cometer este tipo de erro terrível. … Essa expectativa é necessária para toda a gente e, de resto, todos a põem em prática. Porém, será que caminhamos sem qualquer risco como sobre uma linha recta e delicada, onde nenhum erro é permitido, em perfeito acordo com o outro? … Assim sendo umas vezes sou enganado pelo outro, outras sou eu que o engano e ainda mais raramente acontece considerá-lo na sua justa medida”