29.7.07

Através da Vidraça - Natsumé Soseki 夏目 漱石

Um amigo dizia-me outro dia que Dostoiévski não viveu o suficiente para começar a escrever mal. Ele dizia-me que um escritor quando começa a envelhecer começa a entrar em pânico ao aperceber-se da proximidade da morte e quer deitar ‘tudo para fora’ como calhar com o intuito de se edificar na sua totalidade, esculpindo sofregamente a sua imortalidade, escrevendo livros mais curtos, menos trabalhados e em maior série.




Longe de mim afirmar que “Através da Vidraça” é um mau livro ou uma má escrita, mas enquadra-se na consciência da proximidade da morte que despertara em Soseki em 1915, um ano antes do seu falecimento. O livro é uma compilação de uma série de descrições de episódios da vida de Soseki e das suas memórias naquilo que se podem considerar 39 ensaios. Quando remota à sua infância faz o retrato de um Japão em movimento e em reconstrução (em pleno período Meiji).
Para quem não conhece o autor, Natsumé Soseki é um marco da literatura desta era de modernização japonesa, pós Período Edo, e é considerado, juntamente com Mori Ogai, parte de um cânone literário do universo japonês que busca uma certa ocidentalização que se poderia dizer ‘em voga’ nesta altura.

“Através da Vidraça” é um livro onde perpassa uma imensa melancolia e uma nostalgia latente. Deixa-nos percepcionar algumas vivências do autor mas não nos deixa penetrar em profundidade na sua personalidade. O que é curioso é que me parece um livro que não se adequará possivelmente a um primeiro contacto com a escrita do autor mas, no entanto, é o único livro de Soseki alguma vez traduzido em português e posto à venda a circular em Portugal (pela editora USUS numa edição de 1993). A escolha parece aleatória, pois muitas das grandes e célebres obras do autor permanecem-nos inacessíveis tais como Watashi wa Neko de Aru (Eu sou um gato); Sorekara (E Depois, 1909) Bungaku Hyoron (Crítica Literária, 1909), etc.

Neste livro, as suas reflexões passam desde coisas mais trágicas, como um assalto à casa do seu pai; até episódios mais humorísticos ou quotidianos a recordação dos seus irmãos a planearem encontros com gueixas, as suas irmãs que tinham que se levantar de madrugada para irem assistir ao teatro Kabuki, e a forma como a paisagem do seu bairro se foi transformando ao longo da sua vida (num período de profunda transformação), as prendas dos leitores chatos, a vez em que comprou um manuscrito de um autor chinês a um colega mas que depois descobriu que aquilo não pertencia ao colega. Enfim, Soseki não se demonstra revoltado, não lança farpas como outrora em obras mais antigas, simplesmente se deixa invadir por um sentimento taciturno derivado da sua doença – uma úlcera no estômago – que acaba por surgir como a evidência da morte. De entre alguns trechos, os seus tormentos e as perturbações da sua sensibilidade e sabedoria profunda de quem compreende que há questões que nunca serão totalmente claras:

“Mas poderei dizer que os outros são todos uns refinados e mentirosos e, desde logo, não prestar a mínima atenção nem dar qualquer crédito à sua palavra? Poderei mesmo reter o contrário do que me dizem, pensar que esse acto é inteligente e encontrar aí um pouco de paz? Arrisco-me a interpretar mal os outros, no entanto, é preciso que esteja preparado desde o início para cometer este tipo de erro terrível. … Essa expectativa é necessária para toda a gente e, de resto, todos a põem em prática. Porém, será que caminhamos sem qualquer risco como sobre uma linha recta e delicada, onde nenhum erro é permitido, em perfeito acordo com o outro? … Assim sendo umas vezes sou enganado pelo outro, outras sou eu que o engano e ainda mais raramente acontece considerá-lo na sua justa medida”
Sara F. Costa

21.7.07

Silêncio de Shusaku Endo 遠藤 周作

Agora que Martin Scorsese se prepara para adaptar ao cinema uma das obras mais conhecidas do escritor nipónico Shusaku Endo (1923-1996), torna-se relevante abordar aquele que é um dos seus romances mais importantes e mais lidos – “Silêncio” (Chinmoku), sobretudo quando a sua narrativa aborda um momento único (e muito pouco divulgado por estes lados...) na história das relações entre Portugal e o Japão.



Em 1643, o mundo cristão recebe com choque a notícia de que o padre português Cristóvão Ferreira, o missionário líder da Companhia de Jesus no Japão, considerado como uma espécie de paladino da fé cristã no oriente, apostatou. Em Lisboa, três jovens padres, Sebastião Rodrigues, Francisco Garrpe e Juan de Santa Maria, antigos discípulos de Ferreira, ficam atónitos com a perturbadora novidade e decidem partir para a terra do sol nascente em busca do seu mestre, procurando descobrir se realmente apostatou perante a tortura e, caso o tenha feito, quais as razões que o motivaram a abandonar a fé. Num contexto histórico em que os missionários portugueses, que haviam propagado a fé cristã no Japão no século anterior, estavam a ser perseguidos pelo shogunato de Tokugawa, a entrada clandestina em terras nipónicas pressupõe um ponto de não-retorno que os três padres decidem assumir incondicionalmente... mesmo que lhes custe as próprias vidas.

A narrativa centra-se na personagem de Sebastião Rodrigues. Chegado ao Japão, Rodrigues irá descobrir uma terra onde a religião cristã sobrevive com dificuldade nalgumas aldeias de camponeses, com os seus seguidores a serem perseguidos por um governo que cultiva a ideia de que “esta terra não é propícia aos ideais cristãos” e tortura todos aqueles que, secretamente, seguem ou professam o catolicismo até que estes reneguem a sua fé. Na sua missão de descobrir Ferreira e tentar manter viva o pouco que resta da fé cristã em terras japonesas, Rodrigues deparar-se-á com um conjunto de situações que lhe farão questionar a inacção do seu Deus perante tamanhas atrocidades ou, por outras palavras, o seu imenso e aterrador silêncio a que o título do livro alude. Sentindo-se abandonado a si mesmo numa terra estranha que lhe resiste, e desejando o martírio como fim glorioso para a sua existência terrena, Rodrigues encontrar-se-á perante o terrível dilema de ter de abdicar das suas crenças para salvar a vida daqueles que veio evangelizar ou manter-se fiel à Igreja sem, no entanto, cumprir os seus ideais de salvação de todos os homens.

De que nos fala, no fundo, “Silêncio”? Essencialmente, é uma história sobre a fé ou, melhor, sobre a dúvida como parte fundamental de qualquer crença religiosa sólida. A viagem de Rodrigues, mais do que uma simples demanda pelo seu mentor num território desconhecido, é, sobretudo, uma jornada de questionamento interior da sua própria fé no dogma cristão – horrorizado com o sofrimento dos camponeses japoneses, bem como com o cerco que se aperta em seu redor, Rodrigues depara-se com um conjunto de frustrações amargas que lhe farão rever e pôr em causa toda a sua adoração pela figura de martírio de Cristo – ao mesmo tempo que tenta, desesperadamente, não abdicar dos valores e da fé que o guiaram durante toda a sua vida. Não é difícil encontrar, nas dúvidas do protagonista, paralelismos com a vida do autor, nem tão pouco perceber o que o terá motivado a escrever este romance - o próprio Endo teve uma vida preenchida de conflitos com a sua fé cristã, e foi só através de um estudo aprofundado da vida de Cristo e da descoberta de que o lendário mártir também tivera dúvidas que o autor conseguiu conciliar-se com a sua fé e com o mundo.

Como refere Scorsese no excelente prefácio que assina para a recente edição da Peter Owen, outro dos factores determinantes na história é o realçar da importância da figura de Judas na saga bíblica – o seu papel é inúmeras vezes referido por Rodrigues, que, no seu período de formação, nunca compreendera totalmente a sua importância na mitologia cristã e que irá, ao longa da história, começar a perceber o significado da frase que Cristo lhe dirigiu: “O que tens a fazer, fá-lo depressa.” A figura de Judas, aliás, ganha uma curiosa personificação nessa personagem extraordinária que é Kichijiro, um pobre e fraco pedinte que assume, desde o início, a sua fraqueza, a sua corrupção, a sua incapacidade de se manter fiel perante as circunstâncias mais duras... portanto, a sua própria humanidade.

O que realmente surpreende na escrita de Endo é a extraordinária compreensão que demonstra ter pelas fraquezas e dúvidas das suas personagens – não estamos perante uma ficção com heróis duros e perfeitos, a dúvida e a insegurança são uma constante nos pensamentos de Rodrigues e o autor, com inegável mestria, consegue descrever estes sentimentos sem entrarmos numa escrita exclusivamente centrada na primeira pessoa e, acima de tudo, sem nos fazer perder o interesse pelo desenrolar da história. Não estamos tão pouco perante um panfleto anti-cristão ou meramente denunciante da perseguição japonesa aos missionários portugueses. O objectivo de Endo parece ser o de mostrar que a verdadeira fé (seja ela cristã, budista ou muçulmana) não consiste numa obediência cega e militante dos dogmas religiosos mas, antes, numa constante (re)interpretação das grandes narrativas canónicas e no respeito pelo valor da vida humana.

Mais do que uma mera história sobre religião, e mais do que um simples romance histórico, “Silêncio” de Shusaku Endo é um romance notável que urge descobrir, seja nas suas versões em inglês ou francês, enquanto uma nova edição portuguesa (que, provavelmente, só será publicada aquando da estreia do filme de Scorsese...) não chega.

Ricardo Gonçalves

Deux amours cruelles

Junichiro Tanizaki
Traduzido do japonês para o francês por Kikou Yamata.
Prefácio de Henry Miller.

Stock, sept.2002, 159 pages, ISBN 2-234-5512-6, prix : 7,50 €

Este livro compreende duas histórias: l’histoire de Shunkin, et Ashikari, une coupe dans les roseaux.

Esta edição traz um prefácio interessantíssimo que não é de Mário de Andrade, mas de Henry Miller. Ele fala do seu amor pela arte e literatura japonesa e diz que elas têm sobre ele um efeito misto. “Tenho, às vezes, a sensação de que tudo aquilo se passa em outro planeta e fala de uma espécie que acaba de ser descoberta, outras vezes, sinto que tudo isto me é conhecido, que é a expressão mesma do homem original, a mais humana possível, a mais universal de todas as raças da terra.”

L’histoire de Shunki, a primeira das histórias, relata a vida de Koto Mozuya conhecida como Shunkin, filha de uma família rica. Shunkin tinha muitos talentos, a família a respeitava e investia nela. Aos nove anos, entretanto, Shunkin perde a visão e torna-se professora de música. Era extremamente exigente e punia com severidade seus alunos. Sasuke era aprendiz da família de Shunkin, apaixona-se por ela quando ainda menina, torna-se seu discípulo, atende todos os seus caprichos, mas não é aceito como esposo por causa de sua condição social inferior. Shunkin o aceita como amante e ainda assim, nunca assume publicamente a relação. Nada abale, porém, os sentimentos de Sasuke, ele comete os atos mais extremos por Shunkin. Quando ela, por causa de sua arrogância, é vítima de um atentado e seu belo e seu belo rosto fica, para sempre, desfigurado, Sasuke fura os próprios olhos para não vê-la naquele estado.

Ashikari, a segunda história, trata da vida de Oyu, uma jovem viúva impedida pela família do falecido marido de se casar novamente por causa da obrigação de cuidar de seu filho.


Leila Silva Terlinchamp

12.7.07

The Dancing Girl of Izu and Other Stories


Ao que parece, The Dancing Girl of Izu (A dançarina de Izu) vai ser publicado em português (do Brasil, em Portugal já foi publicado há muito tempo pela Vega Editora) este ano pela Estação Liberdade.

Foi com este livro, publicado em 1925, que Kawabata começou a ser reconhecido. Ele é dividido em duas partes, a primeira claramente autobiográfica e a segunda com contos bem curtos, alguns baseados em lendas japonesas, com alguns elementos fantásticos. O belo conto que dá título ao livro está na primeira parte, é, aliás, o primeiro conto e um dos mais longos do livro. O narrador encontra um grupo de artistas itinerantes e se encanta com uma das meninas, Kaoru, que, por causa da maquiagem, ele imaginava mais velha, ela tem apenas treze anos.
Em Diary of my sixteenth year (Diário dos meus dezesseis anos), o autor narra, em detalhes, a decadência física do avô. Nessa época Kawabata já tinha perdido o pai, a mãe, uma irmã e a avó, agora vivia só com o avô que estava morrendo. Vinte e sete anos mais tarde o autor retoma essas notas sobre o padecimento do avô, a falta de paciência de um e de outro, os arrependimentos, o cansaço. Ele reencontra as folhas e vai refazendo, colocando explicações entre parênteses e ao final. E, ao reler, tantos anos depois, o que escreveu, ele faz uma reflexão sobre a memória, não fossem aqueles escritos, muito do que se tinha passado entre ele e o avô já teria se apagado para sempre. As anotações eram muito francas. Na época, o avô já estava cego e, portanto, impossibilitado de ler, assim Kawabata não precisava temer que seu diário o ofendesse.

Yasunari Kawabata é também o autor de A casa das belas adormecida, livro que inspirou Memórias de minhas putas tristes de Gabriel García Márquez. Ele nasceu em Osaka em 1899, estudou literatura na Universidade Imperial de Tóquio e foi o primeiro escritor japonês a receber o prêmio Nobel (1968). Suicidou-se, em 1972, quatro anos após o suicídio de seu amigo, o também escritor, Mishima.

Seu livro Tristesse et Beauté adaptado para o cinema em 1985, na França.
Leila Silva