29.7.09

Murakami em dose dupla

Para os muitos leitores - fãs, dir-se-ia - de Haruki Murakami em Portugal o título deste texto será enganador porque a dose dupla só lhe pertence por metade. O outro Murakami não é Haruki mas Ryu (村上 龍), um outro inovador das letras japonesas contra o tradicionalismo duma escrita mais linear e intimista que estava esquecido pelas editoras nacionais até a Casa das Letras o recuperar com a edição de um dos seus principais títulos, Na Sopa de Miso.


Não vale a pena confundi-los lá porque são os dois Murakami, mesmo tendo sido entregue a ambos pelos críticos desse mundo fora títulos de nobreza literária pouco habituais, até porque os seus estilos apenas coincidem na modernidade, nada mais.
Comecemos por Haruki Murakami, que já tem publicados com este Dança, Dança, Dança meia dúzia de originais. Tudo começou com o belíssimo Norwegian Wood, continuou com Kafka À Beira-Mar e prosseguiu com a publicação de alguns dos seus maiores êxitos como são o caso de Crónica do Pássaro de Corda e Em Busca do Carneiro Selvagem - pelo meio fica Sput- nik, Meu Amor, um título que já vai na quinta edição, mas que no cômputo das suas traduções em língua portuguesa é um livro menor.

Este Dança, Dança, Dança (1988) retoma o fio da história do Carneiro Selvagem e continua-o. Portanto, apesar de poder ser lido como um livro desapegado de qualquer obra anterior de Murakami, quem o puder ler a seguir ao outro só terá a ganhar. Dança vive por si só e as indicações necessárias para o seu entendimento estão em rodapé nas notas da tradutora - mais uma vez Maria João Lourenço, que aportuguesou o autor em definitivo num dialecto que criou para a obra - e basta-se.

Murakami centra todo o argumento do livro que espalha ao longo de 473 páginas no primeiro parágrafo: "Passo a vida a sonhar com o Hotel Golfinho." Daqui parte o protagonista até à cidade de Sapporo onde busca a explicação para os seus sonhos constantes encarnados pela mulher que o abandonou, uma Kiki que possuía a particularidade de ter umas orelhas deslumbrantes, e quando encontra o fio da meada que procurava volta à Tóquio, que descreve melhor do que nunca.

A descoberta que o protagonista faz no décimo sexto andar do Hotel Golfinho é o ponto de partida para desenrolar o enorme nó de um cordel que o vai guiar por cenários tipicamente murakamianos, que coloca em capítulo após capítulo sem se esgotar. E, se alguma vez se pensou que um dia o universo do escritor teria um fim, este Dança, Dança, Dança (tal como os seus livros mais recentes, um romance e uns contos) vem mostrar que ele ainda está em expansão. Porque, Haruki espanta na forma como vai enganando toda a lógica do leitor e prova que a ponta do cordel pode não ter mesmo fim. Ressalve-se que este livro lido hoje em dia será mais bem entendido que à época do seu lançamento, porque existe já uma outra consciência da realidade global que não se teria então.
No que respeita ao outro Murakami, vale a pena enfiar Ryu neste fim de texto porque é um autor a descobrir por quem gosta de thrillers psicológicos. A trama é violenta e conservada num formol de soft-porno que acalma as pulsões de qualquer voyeur mediano. O turista americano é o protagonista do mal enquanto que ao guia japonês está reservado tornar-se o refém da indústria de sexo que a sociedade japonesa oferece aos seus membros.
Bem diferente da prosa de Haruki, com uma escrita menos inventiva em imagens e metáforas, entre outros artifícios literários, consegue fugir dos lugares comuns a que uma peregrinação pela noite da capital japonesa quase obrigaria. Ryu Murakami entretém--nos apesar de este título ainda não satisfazer por completo quem pretende ter uma alternativa contemporânea ao talento do outro japonês que já tem traduzidos seis livros em Portugal. Principalmente porque ambos sabem dosear o suspense de um modo inigualável e cativam o leitor com as novidades do outro lado do mundo.

João Céu e Silva

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