23.3.10

A História de Genji

Murasaki Shikibu, The Tale of Genji, Translated from the Japanese by Edward G. Seidensticker, Everyman's Library, 1992
 
Murasaki Shikibu a escrever o Genji Monogatari

Em 1543 os portugueses desembarcaram na ilha de Tanegashima. Esta data marca o primeiro contacto dos japoneses com uma civilização ocidental. Reza a história que nesse primeiro contacto o meio de comunicação foi o desenho de caracteres chineses na areia da praia. Os portugueses levavam no grupo um intérprete chinês. Esta versão, independentemente do seu rigor histórico, de um encontro marcado por desenhos na areia, releva da poesia e mesmo da ficção científica, em que seres de natureza diferente comunicam graficamente.
Aquando deste encontro, que teve enormes consequências para a civilização japonesa, já os ideogramas chineses faziam parte da escrita japonesa há mais de um milénio. Importados da China, em data não determinada, os caracteres Kanji (ideogramas chineses) estavam firmemente implantados em 552, data em que a corte de Yamato adopta oficialmente o Budismo. Mas a adopção do Kanji levantou enormes dificuldades, pois eram claramente inadequados à fonética japonesa. A adopção de silabários (Kana) com a atribuição de valores fonéticos a símbolos veio facilitar e resolver muitos dos problemas existentes. No final do primeiro milénio tínhamos uma escrita “misturada”: ideogramas Kanji e silabários, situação que com os devidos aperfeiçoamentos é a actual.

Por volta do século IX todas as obras de história e documentos oficiais eram escritas em Kanji. Só as damas da sofisticada corte entretanto estabelecida em Heian (antiga Kyoto), que conheciam mal o chinês. Para se exprimirem correctamente utilizavam os silabários. Chegou-se à situação paradoxal dos homens da corte e monges budistas com enorme esforço, devido aos milhares de caracteres, exprimirem-se em mau chinês e as mulheres, menos cultas, escreviam em bom japonês lançando as bases de uma literatura autenticamente nacional.

Já em meados dos sec. IX Ono no Komachi escreveu belos poemas mas é por volta do ano 1000, que na corte de Heian, aparecem alguns vultos maiores da literatura japonesa e que são todos mulheres: Sei Shonagon (965-?) e Izumi Shikibu (974-1034),e a maior de todas Murasaki Shikibu (978?-depois de 1014). Foram contemporâneas, conheceram-se, foram rivais ou amigas.

Murasaki Shikibu escreveu a primeira obra a que podemos chamar romance no sentido moderno do termo: Genji monogatari. Monogatari significa conto, história. A lenda coloca Murasaki a escrever a obra no templo de Ishiyama, junto ao lago Biwa, na companhia da filha, ainda criança, depois da morte do marido. Trata-se com certeza de uma inexactidão, pois uma obra tão longa foi escrita em vários locais, mas uma viagem, em meados de Novembro, a esse lugar mítico vale pela beleza do enquadramento, com uma profusão de áceres japoneses vermelhos na euforia declinante do Outono.


Murasaki Shikibu, no templo Ishiyama, ao luar, com a filha.

A História de Genji encontra-se traduzida em Francês, mas o trabalho de Seidensticker é reconhecido unanimemente como a grande tradução ocidental. Acrescenta-se, para os interessados, que a edição referida é um belíssimo livro objecto de 1190 páginas.
A História de Genji teve um papel tutelar nas letras japonesa. Muitos dos grandes escritores do sec. XX foram estudiosos da obra e mesmo tradutores para o japonês actual. Entre eles: Tanizaki Junichiro (1886-1965); Kawabata Yasunari (1899-1972) e a escritora Enchi Fumiko ( 1905-1986).
Sobre a História de Genji dou a palavra a Marguerite Yourcenar, em Les Yeux Ouverts, entretiens avec Matthieu Galey, Le Livre de Poche, 1980:

"— Qu'est-ce qui vous avait particulièrement attirée dans ce roman japonais, le Genghi Monogatari ?
— Cest un des plus riches que je connaisse, par la complexité des personnages féminins, et l'extraordinaire subtilité du personnage du prince Genghi, dans ses rapports avec ses différentes femmes, dans son sens de la variété de ces personnes, de la variété de ses senti¬ments pour elles, et de nouveau nous tombons tantôt dans l’amour-compassion, tantôt dans l’amour-sympathie, tantôt dans l'amour-jeu, de très grand style, d'une civilisation qui y surajoute tous les arts autres que ceux du lit, la poésie, la peinture, la calligraphie, les mélan¬ges de parfums, et aussi le contact avec l'invisible.
— De quoi pourrait-il se rapprocher, dans la littéra¬ture occidentale?
— De rien, absolument. C'est d'une subtilité incroya¬ble, non seulement dans la psychologie des rapports entre hommes et femmes, mais dans le sens très pro¬fond du flottement des choses, du passage du temps, du fait que les incidents de ces amours sont à la fois tragi¬ques, délicieux et fugitifs. Le commencement est admi¬rable. L'empereur - qui a perdu sa maîtresse, torturée mentalement par des intrigues de palais et par ses riva-les, d'autant qu'elle n'appartenait pas à l'un des clans tout-puissants à la cour — l'empereur, donc, envoie une dame d'honneur s'enquérir de ce qu'est devenue la vieille mère de cette femme, et le tout petit enfant qu'il a eu d'elle. La dame d'honneur revient et lui décrit une maison plus ou moins abandonnée, la pluie qui tombe à l'intérieur de la maison, le jardin désert, la vieille mère en larmes qui ne peut rien expliquer, et l'enfant, lui, au contraire, gai, plein de vie, très beau. Ce sentiment du passage des générations, de leur solitude et en même temps de leurs liens à travers la vie et la mort, c'est magnifique.
Quand on me demande quelle est la romancière que j'admire le plus, c'est le nom de Murasaki Shikibu qui me vient aussitôt à l'esprit, avec un respect et une révé¬rence extraordinaires. C'est vraiment le grand écrivain, la très grande romancière japonaise du XIe siècle, c'est-à-dire d'une époque où la civilisation était à son comble, au Japon. En somme, c'est le Marcel Proust du Moyen Age nippon : c'est une femme qui a le génie, le sens des variations sociales, de l'amour, du drame humain, de la façon dont les êtres se heurtent à l'impos¬sible. On n'a pas fait mieux, dans aucune littérature.
- Et cette littérature-là vous a-t-elle influencée, d'une manière ou d'une autre?
— Certes, je n'ai jamais rien écrit de pareil! Il aurait fallu tomber sur un sujet qui permît de telles varia¬tions, et le génie de Murasaki est inimitable, mais cet exemple a dû affiner ma sensibilité, à coup sûr. Ce sens d'une pulsation du temps différente de ce qu'est d'ordi¬naire la nôtre a été mien de très bonne heure, mais mes sujets étaient tout à fait différents, et peut-être mes pensées."

Alberto Costa

2 comments:

Nicolas said...

Puts, ninguém deixou comentOU. Mas foi muito boa a explanação dos alicerces da literatura japonesa.

Uma coisa que me deixa em dúvida é do livros que formam esse alicerce; na China eu tenho uma relativa idéia, mas no japão fora o romance de Genji e de algumas coletâneas de poemas antigos, não faço muita idéia.

Anonymous said...

Alberto essa afirmação é infundada "Só as damas da sofisticada corte entretanto estabelecida em Heian (antiga Kyoto), que conheciam mal o chinês." Mesmo no Genji monogatari aparecem diversos poemas chineses, como essas damas desconheciam poemas que colocavam em suas obras?