11.9.10

O elefante evaporado de Haruki Murakami


Quando um frequente leitor de Murakami começa a ler “O Elefante Evapora-se” sente-se imediatamente assaltado por uma sensação de dejavu. «Espera… já li isto em algum lado!» pensará. E o facto é que o nome do conto não deixa dúvidas: “O pássaro de corda e as mulheres das terças-feiras”. Sim, para quem leu “Crónicas de um pássaro de corda”, vai reler as primeiras páginas do romance, aqui amputado e tornado conto. Ou terá sido o conto a dar à luz o romance? Bom, quem veio primeiro talvez não seja relevante e provavelmente Murakami já terá falado sobre o assunto em alguma entrevista. Acontece que soa quase a “fraude” editar exactamente a mesma coisa misturada no meio de coisas novas. Mas talvez a palavra “fraude” seja efectivamente agressiva na medida em que quiçá apenas tenhamos que nos proporcionar o espaço suficiente de tolerância para compreender o autor.

 Digamos que é um autor que recicla bastantes ideias e não o quero dizer num sentido pejorativo na sua totalidade mas efectivamente temos que reconhecer que ao longo da sua obra vamos percorrer várias vezes ruas que, se não são de todo as mesmas, são tão idênticas como as transversais de Tóquio. É precisamente esta a sensação genérica que esta colectânea de contos pode facilmente deixar a um leitor assíduo de Murakami: a consciência/confirmação das características recorrentes de todos os cenários criados pelo autor. Não é muito difícil determinar isso uma vez que falamos de uma colectânea de contos onde todas as histórias são formadas de raiz dando-nos a impressão de que o livro no seu todo é formado de retalhos que não são mais do que os esboços das ideias de Murakami. Atente-se à personagem de Noboru Watanabe que surge com regularidade ao longo dos contos, tendo sido mais concretizada e explorada em “Crónicas de um pássaro de corda”. Trata-se de uma personagem que corporiza um cunhado maquiavélico tido como referência biográfica do autor.

Assim, torna-se difícil para mim classificar todos os aspectos do livro tendo em conta aquilo que são, na minha perspectiva, histórias e tentativas de histórias, umas conseguidas e outras um mero tracejado, uma mera enumeração de ideias que se poderiam transformar em material de exploração mas que ainda não foram suficientemente buriladas. Entendo, portanto, que existe uma abismal discrepância de qualidade de uns contos para outros. O começo pelo “Pássaro de Corda”, deu-me efectivamente a sensação de gastar novamente dinheiro por um livro com uma capa diferente mas com conteúdo parcialmente igual ao de outro, não posso dizer que tenha particularmente apreciado esta ideia e até me deu a sensação de se explorar esta noção de “conto” com um fim meramente comercial tendo em conta a popularidade do best-seller japonês.

Já o segundo conto do livro “O segundo assalto à padaria” que relata a forma como uma mulher se vê forçada por energias misteriosas a assaltar um pequeno Macdonalds às duas da manhã em Tóquio, é um dos melhores contos do livro, na minha perspectiva. Ali Murakami consegue conjugar o seu supra-realismo habitual com as sua usuais noções de solidão e absurdidade de uma maneira bastante interessante. Contos como “Sono”, deixam-me com uma sensação dupla. Se, por um lado, temos a recorrente personagem solitária e existencialista de Murakami, por outro certos retratos femininos roçam um pouco as minhas cordas feministas e sinto que dar sempre um carácter sedutor às personagens femininas sem o acompanhar de grande densidade psicológica, é para mim um pouco claustrofóbico em alguns pontos da leitura. É uma sensação que me percorre em alguns momentos do livro mas não é uma ideia absoluta. O que torna o livro algo desinteressante são contos como “O pequeno monstro verde” ou “Assunto de família”, relatos estéreis sem grande criatividade, esboços de qualquer coisa que não desabrochou. Os restantes contos são todos interessantes no quadro genérico que transpõe: há claramente um caule central de solidão urbana e uma reflexão sobre o pragmatismo contemporâneo que se alastra pelas histórias que o autor nos apresenta. 

Há nestes elementos algo de extremamente cultural que, apesar de poder ser generalizado, tem fortes raízes na sociedade japonesa em particular. Um dos contos que me tocou mais foi o “Silêncio”, penúltimo conto do livro. Trata-se do relato de um aluno que é ostracizado pelos colegas durante o secundário devido a esquemas de um colega com claro síndrome sociopata. Aqui penso existe uma fracção social – o Japão de Tokugawa tinha como principal pena a ostracização dos elementos desobedientes das comunidades – mas há também a chamada de atenção para a avaliação daquilo que se tornou a glorificação das aparências.

O último conto é o conto que trata do elefante que se evapora em si e penso que o título é bastante explícito em relação ao conteúdo do conto: sim, é sobre um elefante que se evapora! É o abstraccionismo de Murakami! O que dizer mais? Não é um abstraccionismo tão bom como o rapaz do taco de basebol das Crónicas de um pássaro de corda mas isso é porque não há espaço suficiente para se poder desenvolver ramificações de conceitos tão interessantes.


MURAKAMI, Haruki, "O Elefante evapora-se", Casa das Letras, Junho de 2010


Sara F. Costa

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