21.10.10

GIL VICENTE E O TEATRO NOH



Nunca antes se representou no Japão uma peça, cruzando Gil Vicente com o tradicional teatro noh. Shakespeare, Molière ou Tchekhov foram já trabalhados por companhias japonesas e grandes clássicos do teatro europeu foram adaptados e representados em teatro noh.

Por isso, estava mais do que na hora de convocar um dramaturgo português aos palcos do noh e não poderia haver melhor pretexto que os 150 anos do Tratado de Amizade entre Portugal e o Japão, cujo aniversário este ano se celebra. Na hora de fazer uma escolha, o nome de Gil Vicente impôs-se como natural pelo papel que teve como um dos pais da tradição dramatúrgica portuguesa.

1. Gil Vicente: Nota biográfica

Muitas vezes Gil Vicente surge referido como o “fundador” do teatro português. Nascido em 1466, Vicente é, em bom rigor, o fundador da tradição escrita e sistematizada da nossa dramaturgia. Antes disso, grupos populares representavam já em adros de igrejas por ocasiões festivas ou levavam à corte encenações espontâneas em noites onde reis e nobres se juntavam.

Gil Vicente surge numa época de transição entre a Idade Média e o Renascimento e encarna uma vertente renascentista pelo seu lado polifacetado, ao escrever em português, castelhano, latim, italiano ou francês. Foi também homem de múltiplos ofícios: escrevia as peças, encenava-as, representava-as, compunha as músicas e era ainda poeta e ourives na corte do rei D. Manuel.

A primeira representação de uma peça de sua autoria teve lugar na noite de 8 de Junho de 1502: celebrava-se o nascimento de D. João III, princípe que se haveria de se tornar rei de Portugal e em cujo reinado os portugueses chegaram ao Japão, em 1543.

Gil Vicente agradou aos soberanos: encomendavam-lhe peças e foi assim ganhando fama como autor, descrevendo o Portugal da sua época, nas suas glórias e nas suas misérias, nas suas aventuras e feitos, dando conta das suas gentes, sempre num tom crítico.

Nas suas peças encontramos estórias de frades namoradeiros, de cobradores de impostos sem escrúpulos, de nobres sem princípios, de alcoviteiras sem regras, de juízes não isentos ou de burgueses deslumbrados pelas riquezas de África e do Oriente. Gil Vicente foi um retratista da sociedade portuguesa do século XVI, revelando capacidade de observação e espírito crítico. Defendia os fracos e apontava o dedo aos poderosos que se desviavam da justiça. Fê-lo sempre com grande comicidade e dimensão satírica porque acreditava, como dizia o provérbio latino, que “ridendo castigat mores”, ou seja, “é rindo que se castigam os costumes”.

Como se imaginará, tal postura trouxe-lhe problemas, críticas e antipatias mas isso não o fez desviar da denúncia da hipocrisia, na defesa dos pobres e dos simples de espírito.




2. As dificuldades dramatúrgicas e as pontes com o teatro noh

Cruzar Gil Vicente e o noh coloca dificuldades de monta e desafios significativos. Trata-se de procurar conciliar duas tradições teatrais distintas, com histórias próprias, registos particulares, linguagens antagónicas e soluções dramatúrgicas literalmente nas antípodas.

Há, porém, um fio condutor comum entre as duas tradições teatrais aqui presentes: numa e noutra, como aliás porventura em todos os géneros de teatro, há a mesma busca para criar um novo plano, insuflando vida a um texto que, se for apenas lido, morre sem ter cumprido a sua função. Combinar realidade com irrealidade sem sair da linha de simplicidade que caracteriza os teatros vicentino e noh, eis o primeiro desafio a transpôr.

Apesar de estarmos perante estéticas muito distintas – e é bom que este aspecto fique claro – há, curiosamente, alguns traços que ligam Gil Vicente e o teatro noh e que aqui, muito sumariamente, apontaria:

(i) encontramos muitas vezes alguém que apresenta a peça, podendo ou não ser uma personagem da mesma, explicando quem é e o que se vai passar: assim começam, por exemplo, o Auto da História de Deus, onde um anjo explica a acção e os personagens, e Hagoromo, de autor desconhecido, onde o pescador Hakuryo abre a peça ;

(ii) outro traço comum é a presença, tão marcante em toda a cultura japonesa, de referências às estações do ano e aos elementos da natureza. Gil Vicente tem uma peça chamada Auto do Triunfo do Inverno ou, noutros textos, faz a elogia das flores, dos rios, das serras e dos ventos. Esta é também uma tradição nipónica desde a força-síntese dos haiku às peças noh;



(iii) do ponto de vista formal, nem Gil Vicente nem o teatro noh seguem a regra clássica da unidade de tempo, lugar e acção. No Auto da Índia uma mulher espera três anos pelo regresso do marido embarcado. Já na peça noh Kantan , 50 anos fluem num breve verso dito pelo coro: As primaveras e outonos de cinquenta anos/ depressa se desvaneceram. De igual modo, ambas as tradições teatrais se caracterizam pela amplitude temática, levando o espectador da guerra à paz, do amor ao ódio, do ciúme e da tristeza à celebração da vida e do poder;

(iv) Um outro aspecto central do teatro vicentino, como atrás foi referido, é a ironia e o sarcasmo. É verdade que tal registo não encontra correspondência no noh. Mas os textos kyogen visam justamente os mesmos propósitos de sátira e mordacidade. Estes textos eram pequenas rábulas muito curtas que eram representadas nos intervalos do noh para distender e fazer rir os espectadores, recorrendo, por vezes, a temas que são também tipicamente vicentinos, como o do velho senhor enganado por sua mulher, que vemos no Auto da Índia e no Suminuri Onna ;

(v) Apontaria ainda a temática relativa aos barcos. A ideia de atravessar rios, de navegação – simbolicamente representando a “passagem”, a “travessia” – é muito forte em Gil Vicente. Marca um Portugal marítimo, evidentemente, mas marca também uma opção cénica. Não sendo o elemento mais forte do teatro noh, não está, porém, totalmente ausente. A peça Sumidagawa, de Kanze Motomasa, fala-nos de uma mulher que atravessa um rio em busca do seu filho desparecido, que depois se vem a concluir estar morto. Quase que aqui se pode ler também uma travessia vicentina entre o paraíso, que é a loucura daquela mulher, e o inferno com que se depara quando constata a morte da criança;

(vi) Finalmente o último traço que gostaria de sublinhar é que a tradição dramatúrgica vicentina e a tradição noh surgem no mesmo contexto áulico, ou seja, como criações para entretenimento das cortes reais e dos nobres que circulavam em redor dos soberanos, só depois transbordando para fora das muralhas palacianas e chegando a um público mais vasto.



O confronto entre a realidade e a ilusão é porventura a essência do teatro, de todo o teatro, cruza tempos e lugares e é válida desde as tragédias gregas de Eurípides, aos dramas amorosos de Shakespeare, passando pelo teatro experimental de Brecht, pela profundidade do noh, pelo realismo do kabuki, pelo humor do kyogen e, naturalmente, pelos Autos de Gil Vicente. Também aí – talvez sobretudo aí – Gil Vicente e o teatro noh andam de mãos dadas.


Tóquio, 10 de Outubro de 2010
Duarte Bué Alves

Texto apresentado em Tóquio, a 14 de Outubro de 2010, por ocasião do projecto conjunto noh/ Gil Vicente, do grupo Sakurama (Tóquio) e do Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa), no contexto dos 150 anos do Tratado de Amizade entre Portugal e o Japão.

3 comments:

NanBanJin said...

Muito, mesmo muito interessante.

Já agora: chegou mesmo a ser, ou será em breve, levada a palco esta experiência??

Honestamente, adorava ver!


Luís F. Afonso

Anonymous said...

Já foi, no dia 14 de Outubro, em Tóquio, pela companhia Sakurama em colaboração com actor português João Grosso (Teatro Nacional D. Maria II) que aqui veio.
Está a ser estudada a possibilidade desta companhia ir a Lisboa.
Cumprimentos
Duarte Bué Alves

Fernanda Lapa said...

Os alunos do 2º ano de Licenciatura em Teatro da Universidade de Évora apresentam em Julho o espetáculo "Gil Nô" com textos Vicentinos e do Teatro Nô, utilizando as técnicas Samurai/Gueixa que aprenderam com o Professor brasileiro da Companhia "Lume", Semioni. A orientadora do projeto é a Professora Fernanda Lapa. O apoio vocal dos Professores João Grosso e Joana Manuel. O espetáculo parte depois para Matosinhos e para a Escola de Mulheres em Lisboa.