13.1.11

“Silêncio” de Shusaku Endo

Correndo o ano da graça de 1636, Roma e Lisboa recebem, com incredibilidade, a notícia que o Padre Cristóvão Ferreira, jesuíta devoto e pregador exemplar, tinha negado a fé cristã, lá longe, em Nagasáqui, onde exercia o mister de Cristo. Amigos e discípulos lembravam o fervor do clérigo e recusaram-se aceitar que Ferreira tivesse soçobrado na crença perante um Japão adverso e budista. O Padre Sebastião Rodrigues, ex-pupilo de Ferreira, parte em busca do antigo mestre, vencendo marés e adversidades e aporta em Macau antes de prosseguir para essa terra estranha, ilha grande para lá da China, como dissera Marco Pólo.



Em barcaça temerosa chega ao Japão mas logo enfrenta vida de adversidade: era época de perseguição aos cristãos, torturados e mortos por andarem a missionar a fé de deus alheio, desviando almas da ascese budista. Rodrigues não vira costas nem desiste dos seus propósitos, mesmo se punha em risco a própria existência, e logo procura comunidades de cristãos mais ou menos clandestinas que, contra um xogunato impiedoso, insistiam em adorar um deus crucificado e estranho às gentes de Cipango. O padre Rodrigues acaba também ele preso e, traído pela sua bondade e pela imperativa obrigação de perdoar, vê-se às portas dum inferno interior onde dá então de caras com o velho sacerdote Ferreira, japonizado e rebaptizado como Sawano Chuan. Eis o percurso narrativo de “Silêncio” (1966), de Shusaku Endo (1923-1996).

A narrativa de Shusaku Endo só pode ser lida à luz do percurso de vida do escritor (perdoe-se a deriva “à Gaspar Simões”…). Em terra onde budismo e xintoismo se cruzam, com fronteiras fluidas porque a pertença religiosa tem aqui a peculiaridade de não exigir exclusivismo de pertença, Endo era católico, activo e professo, filho de mãe convertida em jovem que lhe inculcou, com êxito, a fé no deus morto e ressuscitado em Jerusalém (não era, aliás, a única particularidade de Endo que, num país onde os estrangeirados, poucos, são anglófonos, partiu para França e aí estudou e viveu três anos).

O livro, porventura o mais conhecido deste autor, traduzido em múltiplas línguas, já levado ao cinema por Masahiro Shinoda em 1971 (nova versão se aguarda em 2013, agora pela lente de Martin Scorsese), foi glosado à saciedade, lido e treslido, em Roma e fora dela, por olhos cristãos e gentios. Linha mais ou menos comum acordou em ver em “Silêncio” um grito surdo sobre a ausência de deus, um pai complacente e indiferente perante filhos que ardiam em chamas só porque nele insistiam em acreditar e, por isso, soçobravam às portas duma intolerância que, essa sim, não conhecia credo. Profundamente simbólico – na sua estrutura, no ritmo narrativo, no pathos quase cruel que inculca ao bom Rodrigues e que o leitor acompanha como se procissão de aldeia se tratasse, rezando de altar em altar e não deixando mesmo de entoar os cânticos apropriados – o livro poderia ser, para o crente, um missal de semana santa, tal é a força da paixão (no sentido cristão do termo) que anuncia uma ressurreição, só previsível pela força da fé e a que nem falta um Judas, aqui chamado Kichijiro e adversário permanente do Cristo-Rodrigues desta narrativa.

Endo não cede à tentação moralista, nem à deriva auto-fágica, nem à vitimização. Tudo seriam caminhos fáceis e evidentes neste cristão solitário em terra adversa (menos de 1% dos japoneses são cristãos). Mas a estória pungente de Endo tem o sabor de um grito de angústia, vociferante, um grito contido, murmurado mas ainda assim dilacerante, pela dor dum casamento infeliz de duas narrativas que não encaixam: a da crença íntima e do ambiente cultural. A dor do autor – quase tão profunda como a de Rodrigues – faz lembrar uma que lhe é paralela (mas não idêntica): a de Lars Von Trier, um católico numa Dinamarca luterana (mas note-se a abissal diferença: Von Trier move-se sempre em terra cristã) e cujos filmes (arrasadoramente belos, por sinal) são mostra dum desconforto que transborda. A mulher que procura sexo alheio para o relatar ao marido entrevado (em “Breaking the waves”), a mãe que mata para salvar o filho da doença (em “Dancer in the Dark”) ou a rapariga violada que encontra redenção na vingança sanguinária (em “Dogville”) foram – todos eles – um testemunho de Von Trier sobre os limites do amor cristão: até onde nos leva essa amor? O que se faz, ou não, por amor?

A narrativa de Endo é, afinal, sobre isso: o que é o amor cristão? Formular a pergunta é quanto baste, mesmo se tratados se esgotaram para dar, debalde, uma resposta jamais encontrada. Procurar em “Silêncio” solução para tal, é tarefa vã. Ali só se encontrará uma pessoalíssima leitura, ou, no limite, uma pista para compreender um peito rasgado, não pela lança dos soldados romanos, mas pela incompreensão que afligia Shusaku Endo.

Duarte Bué Alves

No comments: