13.2.11

Serpentes e Piercings, Hitomi Kanehara


Compreende-se porque é que este livro foi tão aclamado pela crítica (prémio Akutagawa 2004, prémio Subaru 2003) como se de um fenómeno ímpar se tratasse: é um género literário que extravasa os cânones e se situa numa perspectiva pós-moderna de realismo. Há muitas vezes na arte esta necessidade de pertinência, de descrever o que se vive agora numa reflexão que transpõe o mero empirismo e nos leva a uma nova óptica, só que essas tentativas têm que lidar com a necessidade de inclusão num meio restrito e rigoroso e por isso é que é tão difícil aos jovens artistas conseguirem algum destaque. No entanto, o Japão é também conhecido pelos seus subgéneros na literatura e no cinema e as suas apostas da cultura alternativa têm contornos únicos, daí ser mais fácil ver uma jovem autora de 22 anos a merecer tanta atenção, como é o caso de Kanehara.

“Serpentes e Piercnings” é um romance perturbador, visual e uma severa crítica a uma geração cuja ausência de problemas sociais (como as lutas de classes, etc), se revela, no entanto, absolutamente problemática. Como se num realismo sem dores sociais particulares a dor tivesse que surgir espontaneamente em atitudes auto-destrutivas. Claro que há sempre a noção contemporânea de efeito de bolha, de eclosão do capitalismo que não nos deixa o legado de optimismo vivenciado pela geração imediatamente anterior à nossa – aplica-se ao Japão e aplica-se a Portugal. Contudo, é claramente uma literatura que se situa num campo reservado à dor psicológica e a crises niilistas em contraste com um realismo que se pretendia de denúncia.

A personagem principal, Lui, é uma tokyohita que vive uma vida normal de adolescente, longe dos pais e arranjando uns part-times como acompanhante, uma tendência cada vez mais banal na capital nipónica. É uma rapariga sem grandes expectativas na vida que um dia conhece um jovem muito intrigante, frequentador dos bares de Harajuku, que lhe apresenta a sua fabulosa língua bifurcada. Lui fica fascinada pela língua de serpente e propõe-se a fazer o mesmo, assim como uma enorme tatuagem de serpente e de um kirin. Entretanto Lui vai para a cama com o rapaz que conheceu no bar, entretanto vai para a cama com o que lhe faz as tatuagens. Entretanto há uns espancamentos e uns homicídios e ela própria é constantemente ameaçada de morte...por ambos.

Os processos para as suas alterações estéticas são relatados com minúcia. É por este tipo de temática que o livro envereda, muito sensorial e muito descritivo nos detalhes das tatuagens, piercings ou outras mutilações que os jovens cyber punks japoneses tanto apreciam.

Claro que o livro aborda a cultura underground mais agressiva e menos inocente da cena japonesa, com homicídios de yakuzas, sexo sado-masoquista, álcool, drogas, clubbing e, acima de tudo, um individualismo frio que transpõe simbolicamente os cenários dos bares alternativos japoneses ou das casas de tatuagens e que pretende chegar ao sentido de ausência de humanismo e vacuidade de valores da sociedade contemporânea.

O livro desenvolve-se na nossa imaginação e há uma fracção de genuíno distúrbio, provocado pelo grafismo imagético das palavras. A adaptação a filme, contudo, recorreu a actores de dorama (Yuriko Yoshitaka), caindo numa frivolidade contemplativa que já se preveria bastante tentadora. Não é, no entanto, digno de apontamento.
Espera-se que Serpentes e Piercings não seja apenas um lucky strike e que a autora venha a dar continuidade à sua produção. O seu registo é promissor e a sua visão é apelativa. Aguardemos!

Editado em Portugal pela Caderno em 2007.


Sara F. Costa

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