29.9.11

Hanaoka Seishu no Tsuma


Este é um tipo de livro que se encontra escavando uma pilha de um alfarrabista ou remexendo nos livros que se encontram junto a placas que dizem “2euros” em feiras do livro. Trata-se de uma edição de 1983 da Circulo de Leitores e na altura ainda imprimiram uns 6000 exemplares mas penso que não voltou a ser reeditado. De facto, “Hanaoka Seishu no Tsuma” ou “a esposa de Hanaoka Seishu” é a obra mais popular da escritora Sawako Ariyoshi editado pela primeira vez no Japão em 1966. A edição portuguesa deu-lhe o nome da protagonista “Kae” e acrescentou “as duas rivais”. Para além disso, inspirou-se na versão japonesa d’ “O aviso” para fazer a capa (ou algo que a isto se assemelhe). Mas efetivamente, isto é literatura japonesa em todo o seu esplendor, não é um filme de terror japonês de low budget.

Hanaoka Seishu (1760-1835) foi um cirurgião japonês conhecido pelos seus contributos para a história da medicina na área dos anestésicos. Teve uma formação em medicina tradicional chinesa e em métodos ocidentais transmitidos essencialmente pelos holandeses. Um romance que se centrasse na sua biografia seria já por si certamente interessante, mas Sawako foi mais longe na complexidade da sua abordagem e, se do ponto de vista de um leitor ocidental não percebemos muito bem se estamos a ler um livro escrito por um homem ou por uma mulher, rapidamente será fácil percecionar toda a psique feminina envolvida na narração.
Isto porque a autora vai para além dos feitos medicinais do Seishu (mestre) e dá-nos a conhecer a sua biografia do ponto de vista das mulheres que o envolveram e que foram um contributo real para a sua notoriedade profissional.

O livro apresenta-nos antes de mais a forma de organização social daquele período – fins de período tokugawa – fazendo-nos acompanhar as vivências de Kae que, depois de prometida ao filho de um médico local, teve de abandonar a própria família para ir viver com a família do marido. Assim nos posiciona a autora, no olhar de uma jovem virgem prestes a envolver-se com a sua nova vida. Mas mais do que explorar esta noção sexista que levava as mulheres a serem expulsas do seu próprio meio para se deslocarem para os meios dos homens, a autora focaliza-se numa relação muito particular mantida entre dois elementos essenciais: uma sogra e uma nora. É aqui que entram todas as coordenadas psicológicas relativas à possessão de uma mãe pelo filho que entram em choque com aquelas que dizem respeito a uma mulher pelo seu homem.

De facto, este não é o único tipo de complexo psicológico mantido no seio de uma família mas uma vez que retrata o estilo de organização de um período da história do Japão tão longo e tão opressor do ponto de vista psico-social, este complexo edipiano que e as mães tentavam a todo custo que não fosse sublimado para impedir a substituição do objeto de desejo tinha repercussões evidentes no estilo de relações familiares que se reproduziam um pouco por toda a sociedade.

Claro que há aquele aspeto que qualquer obra deste período não consegue ocultar: esta foi uma época extremamente particular para o desenvolvimento das aparências como forma de estar na vida. A organização comunitária que punia pela ostracização formava paradigmas muito específicos de comportamento e todas as aparências ganhavam um relevo profundo na existência das pessoas e, com mais restrições, na vivência das mulheres – sempre com um papel maternal, protetor e de sacrifício pelo bem-estar masculino.

Esta obra-prima de Sawako Ariyoshi é uma reflexão profunda sobre o papel das aparências na vida de uma mulher deste período (ainda atual?). A sua narrativa é uma análise psicanalítica de um conflito profundo que relata simultaneamente o diálogo verdadeiro, aquele que é interior, e a perceção externa. Digamos que para a mesma situação a autora nos dá a ler as intenções reais e as imagens transmitidas conscientemente e aqui esta habilidade única de manejar a hipocrisia como um sabre dá-nos a noção de que os conflitos inter-relacionais são uma guerra onde se combate com arte e com elegância sem que por isso lhes consigamos ocultar a violência.

As duas mulheres disputam assim o afeto do jovem homem, empenhado e visionário relativamente ao seu campo de estudo, o da medicina. O livro tem momentos gráficos muito fortes. As experiências médicas de Hanaoka eram feitas em gatos e cães e há relatos muito pormenorizados do asco de Kae a viver aquela existência oprimida rodeada de cadáveres de animais. O culminar do sacrifício das duas mulheres na sua batalha pelo afeto dá-se quando ambas se querem submeter às experiências de Hanaoka, sabendo que corriam o risco de não despertar dos comas a que o cirurgião as submeteria ou ficarem com graves danos cerebrais para o resto da vida, tais como os que podiam ser observados nos animais-cobaias que utilizava.

Os métodos de Hanaoka, a sua inspiração e as suas influências estão tão bem descritas como se de um artista se tratasse. A convicção, a visão, as inspirações várias do brilhante médico assim como a referência sistemática ao seu mestre chinês Hua Tuo. Hua Tuo foi um famoso médico chinês do Período dos Três Reinos que abriu caminho para as experiências de Hanaoka no campo das anestesias e da cirurgia com uma famosa poção chamada “mafeisan” cujas componentes ainda não são claramente conhecidas, mas que formaram as primeiras anestesias na história da medicina. Hoje em dia este médico mítico tem um lugar especial no orgulho coletivo chinês (apareceu-me em vários textos de manuais de chinês para estrangeiros) mas foi demasiado pioneiro para um tempo que encarava a cirurgia como um sacrilégio uma vez que envolvia mutilação corporal. A poção mafeisan evoluiu assim com Hanaoka para uma poção de nome japonês chamada tsusensan.

Em poucas páginas adquirimos uma perceção cultural muito apurada daquele período, confrontando-nos com a evolução histórica de uma ciência tão importante como a medicina e ainda entrando por campos da psicanálise que não são assim tão recorrentes na literatura ocidental, talvez porque a nossa emancipação e o nosso vanguardismo são demasiado superficiais para aceitar um conflito de amor mãe-filho que podemos encarar como perturbador. Serão estes nossos tabus, afinal, uma forma de conservadorismo?
Fica a dica de leitura.

Sara F. Costa

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