22.2.07

A epopeia dos Heike 平家物語

Esta é uma epopeia que foi escrita no séc. XIV e que relata o conflito entre os clãs Taira e Minamoto; no entanto o poema era anterior, pois tal como muitos outros poemas épicos, foi composto primeiro e transmitido oralmente, antes de ser passado a escrito. Ao longo do séc. XIII foram surgindo poemas sobre o assunto: a ascensão e queda de uma família que detivera tanto poder (os Taira) era um tema bem apetecível. Artistas itinerantes cantavam e declamavam, espalhando-se as estórias. Foi-se criando um verdadeiro ciclo, até que no séc. XIV foi compilada uma versão do que seria considerada a versão canónica do tema (um pouco como sucedeu com as lendas arturianas), embora numerosos episódios fossem deixados à margem. Formaram-se duas escolas de interpretação do tema em mosteiros (uma delas sobreviveu até aos nossos dias), sendo os intérpretes normalmente cegos.



Este tocava um tema com o Biwa (instrumento vagamente semelhante ao alaúde) e depois cantava os versos apropriados.
Fazendo um breve resumo do poema, são descritos uma série de acontecimentos políticos que se dão nos meados do séc. XII que levam primeiro à aliança entre os clãs Minamoto e Taira e depois à luta entre si, resultando numa vitoria provisória dos Taira; os minamoto são quase exterminados, sendo poupados dois jovens (Minamoto no Yoritomo e Minamoto no Yoshitsune) do clã principal minamoto. Estes crescem, reúnem os partidários da família e todos os descontentes contra o regime considerado opressivo dos Taira (liderados por Taira no Kiyomori que fora o arquitecto da rápida ascensão da sua família) e depois começam uma guerra civil (1180) com o apoio de um dos imperadores retirados. Dificuldades internas dos dois lados (a morte de Kiyomori e sua sucessão por um filho incompetente do lado taira, uma breve luta entre Yoritomo e parentes seus do lado minamoto além de maus anos agrícolas), levaram a um atraso das operações. Os taira foram recuando e cedendo terreno (mesmo que muitas vezes não se travassem batalha ou mesmo vencendo), até que decidiram no sul de Honshu (a ilha principal) recorrer a uma batalha marítima para esmagar os adversários.

Taira no Kiyomori por Kuniyoshi Utagawa, 1843-1845


O facto de terem maior experiência marítima, não terem hipóteses de retirar e um plano cuidadosamente preparado, deveria compensar a sua inferioridade numérica, mas a traição de um dos seus que revelou os planos e passou-se para o inimigo com os seus barcos levou à total destruição dos Taira (por combate ou suicídio).
A sociedade descrita no poema é profundamente complexa dadas as mutações que se estão a dar (a acção decorre na segunda metade do séc. XII embora sejam feitas referências a acontecimentos anteriores). O poema é em si reaccionário, pois não vê com bons olhos a tomada do poder pelos samurais, que vão perturbar o equilíbrio imemorial (vê-se assim que é um mundo muito diferente daquele que é descrito nos filmes de samurais, em que os guerreiros e os seus valores são o centro da sociedade). Os cortesãos monopolizavam os cargos e obtinham-nos pelas suas ligações familiares acrescido de redes de amizade (detentores de cargos, familiares imperiais, imperadores, imperadores retirados- pois era hábito ao fim de alguns anos estes abdicarem para se livrarem da rigidez da etiqueta, adquirindo maior liberdade de movimentos), ou pela sua mestria em artes importantes como o domínio da etiqueta, a caligrafia, a interpretação de um instrumento ou recitação de poesia.


Batalha do Rio Uji. por Chikanobu Toyohara, 1898


Uma vez obtido o cargo (digamos de ministro, ou governador) e recebendo-se os rendimentos, era nomeado um adjunto que exercia efectivamente o cargo e que tinha de se deslocar e governar. Como a hereditariedade era fundamental para se obter um cargo (embora as intrigas determinassem quem obtinha o quê), os “Busho” (guerreiros) provinciais estavam completamente sem hipótese de ascender mesmo que se deslocassem à capital, por não terem antepassados gloriosos, ficando sempre reduzidos a combater por ordens superiores. Esta é a sociedade considerada ideal pelo poema (várias vezes é lamentada a sorte de um cortesão ministro que é destituído e exilado por ter conspirado contra os Taira, apesar de ser um excelente tocador de flauta ou algo do género sendo substituído por um Taira que apenas se dedica ao cargo e a combater). Ora o ponto de vista destes era diferente dos cortesãos: se alguém beneficiava do seu apoio, devia ser totalmente devotado e não devia andar a mudar de fidelidade; se o fizesse era um traidor. Lógica simples, pragmática, mas que caiu mal nos meios cortesãos, habituados a intrigas subtis.


Kumagai e Atsumori por Sadanobu III Hasegawa, ca. 1950s


Os Taira rapidamente adquiriram os cargos-chave, apoiando-se na sua clientela militar, mas também se preocuparam em adquirir cargos de importância simbólica (ministro da direita, da esquerda, capitão de 1º, 2º, 3º grau, etc).


É preciso não esquecer, que os Taira (tal como os seus rivais, os Minamoto) eram de descendência imperial (com uns 300 anos) só que tinham-se ruralizado, perdendo assim toda a possibilidade de reclamar fosse o que fosse aos olhos dos Fujiwara e outros clãs cortesãos. Casaram membros seus com membros da família imperial (o imperador Antoku era filho de uma Taira).


De forma completamente diferente agiram os Minamoto: estes não quiseram saber dos cargos imperiais, bastando-lhes o domínio das armas, deixando os cargos que se tinham esvaziado de funções para os cortesãos. Este é já a sociedade dos filmes de Akira Kurosawa.Uma curiosidade: no livro aparece a referência a um Ashikaga (clã que dominou o shogunato do séc. XIV a XVI): a personagem terá mesmo existido ou será que foi colocada no poema para agradar aos senhores do séc. XIV?Já agora, fiquem a saber que os Heike eram os Taira (daí o nome das guerra Gempei entre os Genji- Minamoto e os Heike- Taira).

É dada enorme importância à cultura chinesa, e cada vez que se planeia uma mudança contra as tradições, é apresentado um exemplo da história chinesa (por vezes da japonesa também). E temos de ser justos: embora a visão do mundo seja reaccionária, o poema não começa a denegrir sistematicamente os que são criticados e eles apresentam os seus motivos que são perfeitamente válidos e não caricaturas. Os Taira caem devido aos seus pecados (subiram mais do que deviam graças à bondade imperial- e aí o poema “esquece” a força das armas- abusaram da sua posição apesar da bondade de alguns membros como Shigemori), o seu destino está traçado devido ao Karma.

Não é uma epopeia guerreira: embora sejam descritas batalhas, não é feito o recitar interminável de espadeiradas e feridas como no Beowulf ou a Ilíada; mais depressa se descreve a roupa de um general. É um poema que tinha que agradar a vários públicos e não apenas a samurais.

Links de interesse:

Download do Heike Monogatari (original):http://etext.lib.virginia.edu/japanese/heike/heike.html

Abordagem ao livro com algumas explicações e resumos de capítulos (inglês):

Fabiano

2 comments:

Anonymous said...

Li o tale of heike e achei espetacular! este artigo resume muito bem e explica mto bem


Marco

Fabiano said...

Obrigado!