4.8.16

As confissões de Kanae Minato

Confissões() é a mais recente peça de ficção japonesa editada em Portugal (julho de 2016) e traduzida em português pela Suma de Letras, uma chancela da Penguin Random House Grupo Editorial. O romance foi traduzido para inglês em 2014, editado no Japão em 2008. A obra conta com três milhões de exemplares vendidos no Japão e menção como um dos melhores thrillers do ano na Booklist e no The Wall Street Journal em 2014. Conta ainda uma adaptação a cinema por Tetsuya Nakashima. A autora Kanae Minato (凑佳) escreveu este livro aos trinta anos e ainda não assegurou a mesma popularidade em relação às suas obras posteriores mas, da mesma forma que este livro chega ao mundo anglo-saxónico seis anos depois de ter saído no Japão, pode ser que ainda voltemos a ter contacto com edições traduzidas de outra produção sua.




A literatura contemporânea japonesa traduzida para o ocidente começa nos últimos anos a recair sobretudo no subgénero do terror e do mistério. Tornou-se uma tendência geral esperar que um japonês escreva mais uma vez sobre o sistema educativo despótico com consequências perversas, os laços familiares de uma sociedade desassossegada, o comportamento humano de natureza abalável, o amor doentio e as vinganças mais criativas. Por outro lado, numa sociedade altamente obcecada com a organização e a notoriedade pessoal como canalização de prestígio nacional na anulação do indivíduo é precisamente o tipo de sociedade que gera o ambiente propício ao desabrochar de literatura contracorrente e subversiva. No fundo, chega-nos o melhor porque o pior também lá existe e é precisamente essa a inspiração dos bons autores.

Yuko Moriguchi é professora de ciências numa escola do ensino básico. Depois de um noivado que terminou em tragédia, a sua filha de quatro anos é tudo o que lhe resta. Frustrada com a malvadez dos seus estudantes, o incidente nefasto que provoca a morte da sua última alegria conduz Yuko a uma loucura vingativa. A sua despedida será sangrenta.

Relatado a várias vozes, ou a várias “confissões”, a narrativa desenvolve-se sobre contornos negros para contornos ainda mais negros em que várias tragédias se sucedem mas se reencontram numa só explicação articulada no final. O estilo simples e impessoal da exposição esconde uma história rebuscada e com vários sobressaltos. Mas os sobressaltos são mais do que episódios descritivos, são antes diferentes leituras e auscultações da psicologia humana assim como na contextualização insalubre de cada personagem mais perversa que a anterior. Parte do lado perturbador da história relaciona-se com o facto de ser uma levada a cabo essencialmente por crianças de 12 e 13 anos.

Com algum historial na literatura japonesa contemporânea, a questão da Lei da Criminalidade versus o Linchamento popular surge como reflexão legítima mas nunca linear. Se em 19Q4, Haruki Murakami se debruça sobre uma poderosa assassina em nome do bem ou em Death Note o personagem de anime acha-se com autoridade de condenar com pena de morte quem bem entende, a questão surge mais uma vez neste livro de Minato. Ao referir-se ao caso de uma criança que matara os pais com veneno, a professora protagonista reflete “Lembro-me de pensar então que não seria necessário um julgamento num caso daqueles. As pessoas que mais sofrem teriam o direito de julgar os que os magoaram (…) só seria preciso julgamento quando não restasse ninguém”. 

O livro procura explorar o conceito de justiça popular através de uma reflexão sobre os motivos que conduzem as suas personagens ao ato criminoso. 



Na sociedade portuguesa é recorrente a conversa de café que faz a apologia da pena capital nos casos que mexem com a opinião pública.  Esse instinto de justiça pelas próprias mãos é um conceito primitivo que não cabe num estado de direito democrático por mais tentador que seja.

A faceta típica de sociedade japonesa – as aparências e a importância do prestígio, a importância da ordem aparente – é bastante explorada na personagem do Naoki Shitamura e na sua mãe que não quer que o filho se torne naquilo a que os japoneses chamam de Hikikomori引き篭 - um termo que só existe em japonês e que designa um comportamento de isolamento extremo. Mesmo que os motivos para esse comportamento sejam um profundo trauma por uma experiência que destrói a sanidade mental do filho – “o importante é não pensarem que o meu filho é um Hikikomori” alega a personagem.

Dentro do ambiente obscuro e perturbador do livro há imagens fabulosas como o momento em que a criança que pensa ter sido infetada com sida pela professora – que lhe teria colocado sangue infetado no leite - decide cortar as mãos e ir ao supermercado marcar todos os produtos com sangue.
Num país onde os níveis de criminalidade são relativamente reduzidos, é coerente que “as pessoas tenham uma aversão instintiva ao assassinato” e “num país como o Japão, onde a religião não conta grande coisa, suspeito que a maioria das pessoas tenha sido ensinada a valorizar a vida, acima de tudo, contudo, a maioria dessas pessoas apoiam a pena de morte no caso de crimes particularmente brutais, sem se darem conta da inconsistência da sua posição” reflete a criança génio da história. (pág. 166)


“Confissões” sai no Verão e pode ser lido em algumas horas na praia mas não promete relaxamento de férias, porque o seu efeito é o de uma ansiedade pulsante que quebra certos estigmas que ainda existem na nossa ficção – como o de crianças assassinas, o mesmo tópico da obra mais conhecida de Yukio Mishima.

“O que será que as pessoas querem realmente saber acerca de um criminoso? As suas origens ou os seus problemas psicológicos ocultos? Ou talvez os seus motivos para cometer um crime?” pag.164


Sara F. Costa


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