28.1.15

Kenzaburo Oe: “As regras do tagame”





Torika ko 取替え子-, em inglês “Changeling”, em Portugal “As regras do tagame”. Esta obra autobiográfica e cheia de reflexões sobre a arte e as memórias é um livro de Kenzaburo Oe. Conhecida é a história do cunhado do autor, Juzo Itami que se suicidou em 1997, saltando de um edifício. Este suicídio, talvez como qualquer suicídio mais ou menos evidente, adquiriu contornos misteriosos. Dentro das teses mais recorrentes encontra-se a seguinte; Itami fora forçado a suicidar-se devido a um filme em que denuncia membros dos Yakuza. Uma segunda hipótese estaria relacionada com os tabloides, aqueles que o perseguiram insistentemente com histórias de relações extraconjugais.

Ambas as teses discorrem ao longo das páginas desta obra de Oe. As Regras do Tagame pertencem a uma trilogia ainda não completamente traduzida nem para inglês nem para Português mas cujos títulos em inglês seriam “The Boy With a Melancholy Face’’ (2002) and “Farewell to My Books!’’ (2005).

“Tagame” é o nome dos auscultadores que Kogito dizia parecerem-se a escaravelhos de água dos riachos de Shikoku (tagame). Através destes auscultadores, Kogito pode manter conversas com Goro, uma vez que este lhe deixa uma pilha de cassetes com os seus pensamentos de modo a manter com o amigo uma conversa à distância. A distância essa, Kogito não suspeitava, poderia ser a da própria morte.

O mundo da fama, neste caso debruçando-se sobre Kogito, um escritor consagrado e a sua relação com o cunhado Goro, um realizador consagrado (clara alusão à sua relação biográfica com o cunhado). Explora bastante os meandros do mundo da competição artística, da promoção e da megalomania de se superarem continuamente uns aos outros como forma de afirmação. Numa das passagens do livro um desses realizadores que tinham Goro como ódio pessoal escreve “Quando Goro estava a olhar para o solo, do cimo daquele edifício, talvez o meu prémio lhe tenha dado um empurrãozinho ligeiro”. A cobertura televisiva e o universo tabloide é aqui dissecado pela personagem principal, uma vez que há grandes possibilidades de ter sido todo esse burburinho mediático o responsável pelo esgotamento do realizador.



Outra referência biográfica, sempre presente na literatura de Kenzaburo Oe é o filho deficiente, Hikari, que nasceu com uma hérnia no crânio e cuja vida só poderia ser salva com uma operação que lhe causasse danos mentais permanentes.
Para além do traço autobiográfico e de toda a interpretação que podemos fazer face à vida do autor, o conceito de Tagame é para mim um conceito extremamente profundo. A personagem principal consegue comunicar com alguém que já não existe neste mundo. Todas as noites, depois da morte de Goro, Kogito obsessivamente mantém diálogos semi-imaginários com o amigo através do Tagame. Trabalha de dia e tem uma vida noturna em que fica até de madrugada a falar com o fantasma do amigo. Esta situação começa a ser perturbadora para a mulher e filho e lança o escritor a aceitar uma proposta de trabalho em Berlim, para se afastar um pouco de tudo aquilo que no seu dia-a-dia o lembrava do companheiro falecido e do próprio Tagame. Um conceito assim – a tecnologia ao serviço do espiritismo (ou espiritualidade, dependendo do posicionamento de análise) – é tão intrinsecamente japonês que me lembra imediatamente animes como Serial Experiments Lain, a menina que enviava emails depois de se suicidar e que continuava a existir num mundo digital paralelo.
O livro imerge-se nesta conceção do espírito enquanto morada eterna do ser. Esta abordagem é reforçada num pequeno episódio em que a mãe de Kogito lhe explica que fala com ele quando o vê na televisão “Tudo parecem aparições. Falo sozinha e falo contigo quando estás na televisão.” Também um traço marcante da literatura e arte japonesa desde Genji  Monogatari, a noção de espectro, espírito, aparição volátil enquanto transportador da essência de uma pessoa, independente do corpo.
As conversas através do Tagame e as próprias memórias do escritor são coisas que no livro se misturam e se tornam num grande diálogo entre este e o seu amigo suicidário. Conta-nos as suas memórias de conversas sobre a morte, o conceito de corpo e de espírito, a sua separação. As “conversas com palavras rebuscadas” em que na adolescência discorriam sobre estes tópicos metafísicos e simultaneamente existencialistas.
“Não estaria Goro, ao decidir morrer de livre e espontânea vontade a identificar-se com aqueles que se empenham na descoberta de uma claridade divina?” pág. 31.




Algo que me cativou particularmente nesta leitura foi o facto de Kogito – neste caso, a personagem que incorpora o retrato do autor – mencionar a poesia francesa como ponto de referência para a sua obra literária. Noutras obras poderia pensar-se em Kenzaburo Oe mais relacionado com autores como Blake, Yeats ou Eliot (as suas influências assumidas). Mas aqui, a existência do espírito artístico do escritor potente passa para uma fase de revisão da sua criação, como a menção aos poemas de Rimbaud traduzidos para o japonês por Hideo Kobayashi. Goro despede-se com o poema “Adieu” de Un saison en enfer. Como grande fã desde adolescência dos simbolistas franceses este é para mim um ponto de identificação maior com a literatura japonesa contemporânea do que com a literatura americana de início do século XX que costuma ser a grande influência destes autores. Digamos que este livro tem uma viragem mais europeia nos seus conteúdos e referências.

A cassete do tagame foca um incidente em 1952, quando Goro e Kogito, enquanto adolescentes são cativados por um líder ultranacionalista marginal cujo plano passa por uma insurreição simbólica contra a ocupação americana. Mais tarde Goro e Kogito são confrontados com uma proposta concreta de um soldado americano pró-japão em encontrar armas e tentar um golpe de estado. Não consigo evitar de recordar Yukio Mishima.  A posição da personagem assim como a do autor são evasivas, embora este tipo de contextualização política seja recorrente ao longo do livro. Em última análise, o autor reconhece que a maturidade da arte passa pela perda da inocência.

Não me parece que seja um livro com uma conclusão clara, mas antes um livro com o qual se pode meditar sobre inúmeros temas, alguns universais e outros mais intrinsecamente japoneses para os quais um conhecimento mais profundo da realidade sociopolítica e da história recente do Japão se demonstram necessários.

Algumas passagens sobre o funcionamento dos Yakuza foram apontados pela crítica como demasiado gráficas. Penso que não foi parte de um plano estilístico pensado mas numa declaração sincera de questionar o seu próprio estilo.

Com o passar do tempo e da idade é comum encontrarmos os autores a deambularem sobre o que é ou não moral, a darem sugestões e ensinamentos. Em Oe esse tipo de pensamento afasta-se do seu ego e transforma-se num silêncio poético rambaudiano. Há sem dúvida um tom de questionamento sobre a sua produção e o caminho que escolheu enquanto artista e autor. O que é certo é que qualquer outro caminho seria igualmente questionável, na vida ou na arte. O silêncio que Rimbaud conseguiu tão jovem pode ser a resposta a uma vida repleta de procuras infindáveis.   


Sara F. Costa

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