7.9.15

Manazuru - Hiromi Kawakami



"A narrativa apresenta-se como uma história inocente e límpida, mas sem que saibamos onde nos leva. E, na sombra de certas passagens dir-se-ia que descobrimos qualquer coisa." Seiji em relação ao romance de Kei


Passaram doze anos desde que Kei vira o marido pela última vez. Rei desaparecera sem dar sinal, deixando para trás uma filha de 3 anos, a esposa e a sogra. Como antítese do marido desaparecido surge Seiji, um pai de família com quem Kei mantém um relacionamento amoroso, supostamente marginal mas perfeitamente natural no enquadramento da narrativa. Em Tóquio, Kei não consegue aceder com exatidão à sua própria memória, só quando se encontra a sós em Manazuru adquire os meios para comunicar com o passado. Passado esse que não se apresenta linear mas antes com várias bifurcações.

Há na escrita de Hiromi Kawakami uma prosa elegíaca, polvilhada por pontos de tensão e de alívio. Pode dizer-se que todo o livro é uma viagem tortuosa a um passado tão volátil como o mar de Manazuru, onde a personagem encontra um refúgio. Um asilo estirado entre a relação que estabelece com espectros que a perseguem, mas que nunca se tornam atividade central do relato, e a indagação das motivações que levaram um homem naturalmente inacessível a perder-se para sempre. É um enquadramento clássico do espírito na mitologia japonesa. Não existe a assimilação conceptual do fantasma enquanto elemento de perigo. O fantasma é uma extensão da perscrutação da psique de Kei.

Se, por um lado, o livro nos fala da relação entre as três mulheres de três gerações diferentes e enfatiza a dificuldade da mãe ao lidar com a sua filha adolescente, muitas vezes tenaz e irascível, por outro faz-nos compreender que essa dificuldade é momentânea e que pertence à realidade da mesma forma que o arroz glutinado pertence ao mochi. A relação de Kei com os homens é conflituosa e representa, em última análise, solidão.

 O desaparecimento misterioso de Rei é várias vezes reinterpretado e sugerido. Um sonho em que naugrafa num barco em chamas? Um sonho em que Kei o asfixiou até à morte? Os espíritos sabem onde ele está? O pai e a irmã decidem considera-lo morto e Kei trata do óbito.

Como em grande parte da literatura japonesa, o invólucro descritivo e límpido da prosa imprime arguciosamente camadas de significação à narrativa. Podemos definir este livro como um thriller psicológico repleto de uma lenta, amena melancolia. Podemos encará-lo como uma reflexão sobre o papel de género na sociedade japonesa contemporânea ou uma meditação sobre a relação complexa entre uma mãe e uma filha. Ou podemos simplesmente deixar-nos levar por uma história que acaba tão inexplicável como começa. Desprendendo-nos do impulso da lógica e provavelmente das referências culturais que nos levam a decifrar a racionalidade por detrás de todos os acontecimentos, talvez ao ler Kawakami o melhor seja deixarmo-nos levar por sensações e estados de espírito numa expedição ao âmago da memória em constante mutação. 

Hiromi kawakami (1958) é uma tokyohita traduzida e publicada em Portugal pela Relógio D’água em 2012 com as obras “Manazuru” e “Os Anos Doces”.


Sara F. Costa

No comments: